Congresso Nacional| Foto:

O presidente Jair Bolsonaro resmungou, à sua moda: “Querem me transformar numa Rainha da Inglaterra”. Não deixa de ser curioso o insinuado desapreço pelo regime e pela liturgia dos ingleses, considerando que parte significativa do eleitorado se declara conservadora e até monarquista. Aliás, nosso príncipe liberal (oximoro só possível em paragens como o Brasil...) chegou a ser cotado para a vice-presidência da República. Foi preterido ou preteriu.

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Mas a verdade é que presidente gosta mesmo é de presidir. Bolsonaro, como tantos outros antes dele, adoraria pousar a bic no papel e, se possível, governar por decreto. De decreto em decreto se chega lá. Tal é o sonho de muitos presidentes e de todos os ditadores. A ditadura é simples: eu mando, vocês obedecem. A democracia é complexa, daí as dificuldades. Dificuldades que fazem bem.

Canetas e canetadas à parte, a insatisfação que ele confessa tem fundamento, faz algum sentido e, por incrível que pareça, não deixa de ser um efeito colateral positivo de certa disposição negativa. Ou, para ser mais exato, de certa disposição impositiva de sua parte. Atirou no que viu, acertou no que não viu.

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Durante a campanha eleitoral, uma das promessas era a de que não negociaria cargos, não lotearia o governo, não trocaria ministérios por apoio. Em parte, por bons motivos (muitos governos trocaram vagas por votos), em parte, por equívoco (ceder ministérios a aliados competentes não é corrupção). O então candidato jurou de mãos postas e pés juntos que com ele não, violão, com ele nunca, Centrão, com ele a conversa seria outra.

Foi mesmo. Está sendo.

Eleito, tratou de escolher a dedo (às vezes, dedo podre...) seus subordinados. Algumas escolhas boas e técnicas; outras, ruins e ideológicas; outras ainda por lealdade pessoal. O resultado é o que temos aí, já com modificações importantes em algumas áreas. Bolsonaro não negociou, nem permitiu que partidos e coligações tomassem conta de seu governo. Em tese, muito bem.

Na prática, nem tanto. O Messias acreditava piamente que submeteria o Congresso e o Judiciário ao peso de sua bic. Faria da bic um martelo de Thor. E todos, em fila indiana, aguardariam à porta do gabinete, esmolariam cinco minutos de atenção. Lembro-me de quando ele disse isso, quase palavra por palavra, à jornalista Miriam Leitão: “Vou ser presidente, Miriam, eles vão ter que vir falar comigo”.

Faltou combinar com eles.

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Que o governo não tenha sido colonizado por aliados de ocasião é uma boa novidade. Não estou sendo irônico. Goste-se ou não das escolhas, quem aceitou, aceitou porque quis e se alinhou ao discurso do governo. Isso é uma vantagem: temos um perfil mais coeso e sabemos o que há para ser elogiado, criticado, cobrado, lembrado, rido, gozado. Sei de quem posso fazer piada. Decorei os nomes.

No entanto, Bolsonaro foi ingênuo ao acreditar que então governaria sem freios nem contrapesos, sem peias nem meias palavras. Como se tudo fosse acontecer da seguinte maneira: como não negociei com ninguém antes, não precisarei negociar com ninguém depois. Eu assino, assinado estará.

Enganou-se. Pois esse engano nos lembrou de uma esquecida novidade: o Congresso tem um papel a cumprir.

Ora, o regime presidencialista não pressupõe um Congresso vendido, por óbvio, mas também não admite um Congresso tímido, submisso ou caudatário das vontades do Executivo. Só mesmo analfabetos políticos e falsificadores da democracia podem acusar o Congresso de, por definição, atrapalhar o país, quando faz o que dele institucionalmente se espera. O Congresso está lá para governar, tanto quanto o presidente. Se o Congresso é ruim, é ruim; quem o elegeu foi o povo. Se o presidente é ruim, é ruim; quem o elegeu foi o mesmo povo. Elejam-se melhores congressistas e melhor presidente.

Por isso mesmo que não, o que temos aí posto e discutido não é “parlamentarismo branco”, como alguns assessores de imprensa (contratados ou vocacionados) acusam. Trata-se do presidencialismo que o presidente quis, prometeu e entregou: sem troca de cargos, sem comércio de votos, sem toma-lá-dá-cá. Cada um faz a sua parte. Ele só se esqueceu de que o Congresso também tinha a sua parte a fazer.

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Assim, cutucado por Bolsonaro, provocado pelo novo jeito de montar o governo, o que o Congresso tem feito é o que sempre deveria ter sido feito, desde a redemocratização: assumir-se como casa do povo, onde estão eleitos representantes de interesses que têm de ser representados – minorias e maiorias, bancadas da bala e da Bíblia, dos gays e dos negros, dos liberais e dos progressistas. Os representantes não estão lá para representar as vontades do presidente, mas as de seus eleitores. Isso é a exata definição da coisa. Tratar as disputas parlamentares como se fossem antidemocráticas é confessar ignorância profunda do vocabulário e da sintaxe da democracia.

Portanto, quando se diz, em tom de denúncia, com ares de escândalo, que o Congresso tem uma “pauta”, que o Congresso tem uma “agenda”, o que fica subentendido é que o Congresso deveria ser aquele de antigamente, sem pauta nem agenda, cúmplice de presidentes que governavam por decreto e negociatas. Não, obrigado. Prefiro este modelo, reinaugurado por Bolsonaro meio sem querer, em que o Executivo não compra apoio de parlamentares. E parlamentares não vendem apoio ao Executivo. É assim mesmo que se faz. Que negociem, que lidem com o desacordo, que saibam entrar em acordo quando a pauta comum interessar ao bem comum.

Se não for assim, qual será a alternativa? O presidencialismo de medida provisória e decreto-lei? O presidencialismo que duplica o número de ministros da Suprema Corte e fecha o Congresso? O presidencialismo que inviabiliza a oposição? Ou o presidencialismo petista, que privatiza o Congresso e o divide conforme os interesses do Executivo (e dos sócios ocultos do Executivo)? Se, afinal de contas, o Congresso não puder assumir que é um dos protagonistas do governo, que é também governo, o que o Executivo, por sua vez, assumirá: que para governar bastam um presidente, um cabo e um soldado?