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Associação dos Indignados Anônimos (AIA)
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De acordo com o Manual da Associação dos Indignados Anônimos (AIA), Parágrafo Único, só pode indignar-se, compadecer-se e tomar providências pelas respectivas causas quem for oficialmente membro de uma das minorias nele elencadas, ou seus parentes que lhes sejam simpáticos, excluídos cunhados, tios e primos reacionários, ou, se não parentes, seus advogados e procuradores ideologicamente constituídos.

Todos os outros viventes, habitantes ou não deste planeta, estão terminantemente proibidos de sentir, compreender, preocupar-se, compadecer-se, indignar-se e, principalmente, dizer qualquer coisa que porventura venham a pensar ou deixar de pensar sobre as minorias respectivas.

Quem pertence à AIA, de fato e de direito, determina que homens não podem falar dos sofrimentos das mulheres porque são homens e não mulheres. Brancos não podem falar das aflições dos negros porque são, cuspa-se, brancos e não negros. Heteronormativos não podem falar sobre as agruras por que passam homossexuais porque têm o desplante de ir ter biblicamente com o sexo que desgraçadamente lhe é oposto.

Agora, se o indivíduo da espécie sapiens ousar ser, a um só tempo e sem que disso se arrependa e se mortifique, homem, branco e heterossexual, restará banido de todas as conversas entre humanos, e melhor seria que procurasse exílio nalguma inóspita ilha, de preferência próxima a continente ainda desconhecido, para que sua repelente figura não assuste as crianças e não amedronte os pintassilgos.

Breve recenseamento nas redes sociais e publicações especializadas ensina que nem todos podem participar das conversas que parecem interessar a todos. Não muito tempo atrás, uma senhorita branca como a neve e como este clichê dizia muito indignadamente que rematado absurdo é um branco se meter nas conversas sobre racismo. E completava, estendendo a interdição para homens que ousam opinar sobre mulheres e heterossexuais sobre seres de orientação sexual diversa.

Registre-se que a presidente da AIA não admitia nem mesmo que os excluídos dos assuntos esperassem entender os sofrimentos dos incluídos dos assuntos. Então um homem não só não pode opinar sobre o machismo praticado contra a mulher como não pode nem mesmo ter compaixão pelas mulheres. Assim com brancos, assim com negros, assim com quaisquer outros que representem a infinita variedade da espécie.

Parece-me bem. Que me proíbam de falar sobre mulheres, negros, homossexuais e todos os outros exemplares que me são supostamente diferentes tem o efeito de me deixar bastante mais acomodado que propriamente incomodado. Ora, se não posso falar sobre, se não posso compreender, se não tenho em meu equipamento moral o aplicativo necessário para acessar os sentimentos estritos para tais aflições, então vou é ficar confortavelmente instalado aqui na minha Zona de Conforto, ar-condicionado ligado, séries de tevê, livros, café, bacon e indiferença.

Porque seres humanos, salvo engano, servem-se da linguagem articulada para se fazer compreender e para compreender os outros. Só posso me compadecer do mal que provocam, ou que eu mesmo porventura provoque, se o digníssimo outrem se dispuser a me comunicar esse mal, suas causas e seus efeitos. A rejeição ao discurso, ao debate, à troca de ideias, à divergência de opiniões, termina por ser a rejeição de qualquer possibilidade de compreensão. Se não compreendo, não tenho compaixão, não padeço com o outro. Sou-lhe indiferente, frio até.

Sociedades mais ou menos razoáveis chegaram até aqui porque num dado momento o homem das cavernas que éramos largou os tacapes, modulou os grunhidos e chegou à mesma conclusão que Abelardo Barbosa, que estava com tudo e não estava prosa, quando disse muito acertadamente que quem não comunica se estrumbica.

Querem acabar com o preconceito? Melhor: querem acabar com o meu preconceito? Conversem comigo. Eu quero ser convencido, faço questão de ser seduzido. Sou fácil e estou sempre disposto a sair da minha Zona de Conforto para entrar na sua Zona de Desconforto. Quero olhar nos seus olhos, Mr. Outrem, também nos seus, Ms. Minoria, e dizer muito sinceramente: Encosta sua cabecinha no meu ombro e chora, vai.

Publicado sob o título “Meu mel, não diga adeus”

no livro Saudades dos Cigarros que Nunca Fumarei (editora Record)

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