“Ai do mundo, por causa dos escândalos; porque é preciso que venham escândalos, mas ai daquele homem por quem o escândalo vem!”
Agatha Vitória Sales Félix, 8 anos, morreu neste sábado, vítima de mais uma ação policial desastrada (e desastrosa) no Rio de Janeiro. Foi atingida nas costas por um tiro de fuzil. Salvo engano, a criança não constava no banco de dados da polícia; não era procurada, mas foi encontrada. Corrijam-me se estiver enganado, tenho pavor de notícia falsa. Ela não era “bandido”, nem bom nem ruim. Nem bom nem mau ladrão. Mas está morta assim mesmo. Já perdi a conta e não me interessa fazer contas, porque “a morte de qualquer homem me diminui”, e deveria ser contada como primeira e última. Não como número de série.
Houve outras vítimas como Agatha, haverá mais. Se o combate ao crime organizado – não é de hoje – tem feito estragos tão grandes quanto os do próprio crime que se organiza em torno dele, porque o Estado brasileiro é mais tempestade e ímpeto que propriamente inteligência e império da lei, a verdade é que o governo de Wilson Witzel parece ser de outra natureza. Ele assume como substância o que era acidente. Com esse elã, não existem balas perdidas. Todas se alojaram onde tinham de se alojar.
Por essas e por outras, oponho-me francamente à pena de morte. Tanto a pena oficial, que nossa Constituição não contempla, embora tenha entusiastas, quanto a pena oficiosa, que nosso Estado diariamente executa. Essa, aliás, deveria ser a posição de muito conservador e muito liberal que prega Estado mínimo e limites à ação do Estado, e que defende o indivíduo e a família como instâncias mais importantes que o Estado. Ocorre que, pelo jeito, nossos conservadores têm do conservadorismo só os preconceitos, nossos liberais têm do liberalismo só o fetiche.
Uma leitura atenta de Michael Oakeshott, por exemplo, serviria para reavivar essa “disposição conservadora”, que não é em essência reacionária, se bem compreendida, mas trata de nos ensinar a prudência moral e o ceticismo político. E não se invoque o santo nome de Tomás de Aquino em vão, porque as circunstâncias eram outras, sua defesa intelectual (e contextual) da pena de morte era mitigada por tantos senões que, nos tempos atuais, certamente lhe seriam suficientes para mudar de ideia.
O mesmo pode ser dito da permissão hipotética encontrada no Catecismo da Igreja Católica. De fato, consta essa permissão, mas envolvida num sem-número de ressalvas e num amontoado de aconselhamentos que, na verdade, mais parecem objeção que salvo-conduto. Os últimos Papas, a propósito, têm reforçado esse ponto: o crescimento desmesurado do poder estatal nos convida a mais, não a menos, ceticismo diante dele. Em especial, diante de sua força. Questões religiosas e morais à parte, o problema é outro e talvez muito simples de ser entendido. É problema de filosofia política. Partamos dos conceitos de liberalismo e conservadorismo, lidos em suas melhores versões.
Se nego ao Estado a legitimidade de me cobrar impostos abusivos; se nego ao Estado o domínio ideológico da educação; se nego ao Estado outros monopólios quaisquer, como o refino do petróleo e a distribuição da correspondência; se nego ao Estado a prerrogativa de regular a economia e expropriar a propriedade; se nego ao Estado o direito de proibir a religião, a cultura, o livre-pensamento – se nego tanto ao Estado; se quero o Estado, o “mais frio dos monstros”, limitado às funções mínimas que lhe caibam, tamanha minha suspeita, quando não repúdio, ao detentor do monopólio da força – por que hei de conceder justamente ao Estado o maior poder entre os poderes: o de decidir quem vive e quem morre, quem pode viver e quem deve morrer?