A sentença que condena o humorista Danilo Gentili a pouco mais de seis meses de detenção, em regime semiaberto, pode ser lida e compreendida sob pelo menos três aspectos. O raciocínio judicial imediato; o arcabouço jurídico no qual se insere; a paisagem axiológica mais ampla.
Em si mesma considerada, a peça é um primor de rigorismo e excesso. É raro que crimes contra a honra sejam punidos com prisão. A juíza parece ter considerado menos a gravidade do dano e mais a personalidade do autor; talvez isso explique sua recusa em converter a pena ou suspendê-la. Ela não gosta de Danilo Gentili.
Num cartapácio de 133 páginas, admite que o réu não é reincidente nem praticou o crime com violência. Entretanto, ele “expressa uma personalidade merecedora de reprovação em grau elevado”. Reparem: em grau elevado. Perigoso demais para ficar por aí à solta, apresentando programas, contando piadas e ofendendo as pessoas. Mais perigoso que um tal de Champinha. Desse jeito, alguém terá de defender os direitos humanos do malcriado Gentili. Maria do Rosário?
Consideremos, no entanto, que a sentença dada seja uma leitura possível da lei. Rigorosa, excessiva, mas ainda assim possível. Essa possibilidade existe porque temos um código penal repressivo quando o assunto é liberdade de expressão. Por isso, mais do que as eventuais decisões de juízes, o que precisa ser contestado e repensado é a própria lei com que eles são obrigados a decidir.
Embora tenha sofrido emendas e reformas várias, o código penal brasileiro é antigo, em muitos pontos ultrapassado, e tende a ser duro demais com delitos desimportantes e generoso em demasia com delitos graves. Um novo código faria muito bem, embora este seja um momento cultural melindroso. O vitimismo é tanto e tamanho que podem acabar inventando mais tipos penais para agradar a mais gente.
Quando o assunto é liberdade de expressão, defendo o mínimo penal – ou, como queiram, o direito penal mínimo. Ainda que não existam direitos absolutos, a liberdade é daqueles bens que devem ser protegidos com mais vigor e cuidado, pelo óbvio motivo de que é na liberdade que se dá o sujeito moral – até para cometer imoralidades. Tratando-se de embates e debates públicos – ou entre figuras públicas, como é o caso –, a tolerância aos possíveis exageros deve ser maior, quase ilimitada.
Não bastasse isso, a ideia de crimes contra a honra sempre me soou perigosa e escorregadia. Minha reputação não é minha, propriamente: ela é um dado que se apresenta ao outro. Honra e reputação são bens subjetivos-sociais, por assim dizer; sempre relativos. São bens somente enquanto reconhecidos pelo outro. Numa ilha deserta, ninguém se importaria com a própria honra (o que é bem diferente da consciência individual, da vida interior). Portanto, o que pensam sobre mim depende menos de mim e mais da relação que se estabelece entre o que manifesto e a reação dos outros a isso.
Dos tipos penais descritos como injúria, calúnia e difamação, talvez o único que mereça de fato alguma carga punitiva seja o de calúnia. Atribuir a alguém um crime que esse alguém não cometeu. Mesmo assim, a pena deveria ser pecuniária ou variações dessa natureza. Prisão é e sempre será desproporcional.
Por fim, uma consideração sobre o que chamei de paisagem axiológica, isto é, o cenário em que os valores sociais, comunitários e éticos são reconhecidos, aceitos, defendidos ou ignorados. Não deixa de ser irônico, divertido até, que tenha ocorrido uma inversão tão gritante de valores no caso de Gentili. Isso deveria alertar a todos aqueles que batem no direito morto até ouvir o direito miar.
Enquanto uns, que costumam fomentar com energia o elã punitivista, hoje gritam contra o punitivismo, outros, geralmente muito críticos do punitivismo, hoje aplaudem a lição exemplar que esse reprovável Danilo Gentili terá de aprender. Bandido bom é bandido preso? Não se for o meu bandido. Bandido bom é bandido solto? Só se for o meu bandido.
Entre uns e outros, entre a norma e a ideologia, entre os juízes e os princípios, fica o exemplo: fazer do direto o meu direito, ou fazer do direito o seu direito, é certamente a maneira mais fácil e eficaz de terminar não fazendo direito nenhum, para ninguém. Todos perderão. Todos serão penalizados por isso.
Moraes eleva confusão de papéis ao ápice em investigação sobre suposto golpe
Indiciamento de Bolsonaro é novo teste para a democracia
Países da Europa estão se preparando para lidar com eventual avanço de Putin sobre o continente
Ataque de Israel em Beirute deixa ao menos 11 mortos; líder do Hezbollah era alvo