por Igor Sabino
Um dos desafios de quem pesquisa questões de direitos humanos e ajuda humanitária, sobretudo no Oriente Médio, é saber como lidar emocionalmente com situações de extremo sofrimento. É necessário um equilíbrio nem sempre fácil de alcançar. Falo por experiência própria. Desde que passei a me dedicar aos estudos sobre migrações forçadas, no final da graduação em Relações Internacionais, tenho me considerado um “acadêmico ativista”. Busco produzir conhecimento científico relevante a fim de gerar mudanças que melhorarão a vida das pessoas. Foi isso o que me levou ao Líbano, em 2016.
Era o auge da crise de refugiados sírios, e o país dos Cedros havia recebido quase um milhão de pessoas. Muitas das quais encontravam-se em situação de extrema pobreza. Fui com uma equipe da Associação Nacional de Juristas Evangélicos (ANJURE), que levou profissionais de saúde brasileiros para prestar assistência a deslocados forçados em todo o Líbano. Tive a oportunidade de explorar o país de norte a sul e fiquei maravilhado com tudo o que vi. O lindo porto de Sidom, a floresta dos cedros, as vilas de “brasilibaneses” no Vale do Beqaa e a comida maravilhosa me conquistaram. Era uma face do Oriente Médio muito diferente de tudo o que eu já havia visto em outros países da região. No entanto, o que me conquistou mesmo foi Beirute.
Uma cidade que, em meio a igrejas e mesquitas, postas lado ao lado, tinha uma vida noturna vibrante, às margens do mar mediterrâneo. Sentado na orla beirutense, eu podia entender o pouco do que torna o Líbano um país tão especial e complexo. Ali, no mesmo campo de visão, eu enxergava cristãos maronitas, muçulmanos xiitas, sunitas, palestinos e fenícios – como alguns libaneses se identificam. Isso para não mencionar a variedade de idiomas ouvidos: inglês, francês, um pouco de português e, principalmente o árabe levantino, a minha variação do árabe favorita e que, segundo Nassim Taleb deveria ser considerado um idioma à parte. Depois de cerca de um ano estudando o chamado “dialeto libanês”, concordo com ele.
Toda essa beleza e diversidade de Beirute me lembraram de outra cidade médio-oriental que amo: Tel Aviv. A poucos quilômetros de distância da capital libanesa, a cidade israelense parecia tão próxima, mas também tão distante. Culturalmente, pude notar várias semelhanças, inclusive na culinária, alvo de “disputas” entre as várias narrativas que separam os povos da região. Tudo isso, no entanto, não deveria ser uma surpresa, tendo em vista o fato de que tanto israelenses como libaneses e palestinos são todos povos nativos do Oriente Médio, apesar dos muitos conflitos políticos e religiosos que os separam.
Fiquei refletindo sobre isso enquanto entrevistava, em Beirute, para minha pesquisa de mestrado, cristãos iraquianos vítimas do Estado Islâmico. Eles se consideravam assírios e afirmavam que seus antepassados viviam no Iraque desde os tempos de Jonas, o profeta bíblico. No entanto, após a ascensão do grupo terrorista foram forçados a deixar suas casas. Inicialmente, tornaram-se deslocados internos em seu próprio país. Mas, depois não tiveram alternativa senão fugir para o Líbano. Viviam agora em um bairro armênio, em Beirute, rodeados por outro grupo étnico-religioso que no passado também havia sido vítima de uma tentativa de genocídio. Era um retrato claro da beleza e tragédia libanesa: sua diversidade. O que hoje é motivo de orgulho, mas que, no passado já foi uma das causas de conflitos sangrentos.
Outra memória especial que guardo de Beirute são suas ruas e monumentos inacabados e com marcas de tiros. É o que restou da guerra de 2006, entre o Hezbollah e Israel. O Hezbollah, em árabe, “partido de Deus”, é um grupo terrorista financiado pelo Irã e que exerce grande influência no cenário político libanês. O grupo faz ameaças constantes à existência do Estado judeu e, segundo Benjamin Netanyahu, primeiro ministro israelense, tem uma série de mísseis apontados em direção a Israel. Não raro, soldados do Hezbollah são abatidos na fronteira sírio-israelense, ao tentar entrar no lado israelense.
Todas essas lembranças e questões políticas me acertaram em cheio na última terça-feira diante das imagens das explosões na região portuária de Beirute. Muitas pessoas me procuraram pedindo informações sobre as causas da explosão e suas consequências políticas. Afinal, sou um internacionalista e, mesmo rejeitando o título de especialista na região, estudo o Oriente Médio há bastante tempo. De fato, tenho muito o que discutir sobre várias questões políticas relacionadas à explosão. Porém, no momento, tudo o que eu queria era chorar pelo Líbano e lamentar pela tragédia de Beirute.
O país, antes considerado a joia do Oriente, deteriora-se cada vez mais. Antes mesmo do que aconteceu essa semana, o Líbano já vinha ocupando as manchetes do noticiário internacional em virtude do seu colapso econômico e dos altos índices de desemprego, agravados pela pandemia de COVID-19. Uma explosão como essa era tudo o que o país menos precisava. Enquanto escrevo essas palavras, tenho as informações de que mais de 3 mil beirutenses ficaram feridos e que cerca de 300.000 deles se tornaram deslocados internos, sem ter para onde ir. Para piorar, todo o estoque de trigo do país foi queimado e, nos próximos meses, milhares de pessoas passarão fome. Muitos ainda estão desaparecidos em meio aos escombros das explosões e uma nuvem de fumaça cobre a cidade, cujos hospitais estão superlotados. É uma tragédia de proporções bíblicas.
Não consigo pensar nisso e não sentir um nó na garganta. Não tenho ascendência libanesa e visitei Beirute apenas uma vez na vida. Mas, a dor é inevitável. É uma reação humana, de solidariedade ao sofrimento alheio, mas é também um lembrete de que o Líbano é um dos poucos lugares do Oriente Médio em que a população cristã nativa ainda é livre. E, como me lembra o apóstolo Paulo, quando um membro do Corpo de Cristo sofre, todos devem sofrer juntos. Mas, não apenas isso, o Líbano está historicamente ligado ao Brasil durante anos. Temos mais libaneses no Brasil do que no próprio Líbano. As contribuições desses “brimos”, como são chamados, para a nossa sociedade são inúmeros. É como se, além de toda a nossa tragédia nacional, de quase 100 mil mortos pelo novo coronavírus, tivéssemos ainda mais razões para as nossas lágrimas.
De longe, pouco posso fazer, além de orar, já que, enquanto cristão, realmente creio no poder da fé. Oro para que Deus abençoe o Líbano, mas principalmente para que haja paz. Pouco depois que houve as explosões, o governo israelense ofereceu ajuda humanitária aos libaneses, deixando de lado o fato de que, apesar do cessar-fogo de 2006, os dois países ainda permanecem em guerra. Israel não apenas tem tecnologia suficiente para ajudar nesse tipo de situação, como também tem experiência prévia e está a poucos quilômetros de Beirute. Não é a primeira vez que os israelenses propõem esse tipo de cooperação internacional, tendo ajudado inclusive outros países da região, como Egito e Turquia. Sim, é claro que isso é uma forma de soft power de Israel, não sou ingênuo. No entanto, é uma tradição diplomática cujos princípios estão alicerçados na mesma ética judaica da qual também partilho: apesar das fronteiras e diferenças nacionais, todos fomos criados à imagem e semelhança de um mesmo Deus. Em momentos de tragédia como esse que o Líbano vive hoje, é essa humanidade comum o que deveria prevalecer.
Igor Sabino é Bacharel e Mestre em Relações Internacionais pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), e alumnus do Philos Project Leadership Institute. Realizou trabalhos humanitários em ONGs de Direitos Humanos ligadas à American University of Cairo, no Egito, e pesquisas de campo na Polônia, Israel, Territórios Palestinos, Líbano e Jordânia relacionadas a migrações forçadas e perseguição religiosa.