Houve tempo em que o financiamento estatal de cultura – exposições, cinema, teatro – me parecia absolutamente errado. Partindo da premissa de uma filosofia política liberal (e mesmo libertária; tenho meus momentos), eu defendia que os produtos culturais têm de se vender como quaisquer outros produtos no mercado: se um filme não consegue financiamento, se uma peça não tem público, não se faça o filme, suspenda-se a peça. Assim com o livro, com a exposição, com a ópera, com o carnaval.
Pois a certeza envelheceu e virou dúvida. Quando hoje me perguntam, “Deve o Estado financiar ou investir em cultura?”, já não sei o que responder. Coloquei em epoché e fui cuidar da vida. O que me terá feito mudar de ideia ou arrefecer o ânimo dogmático? A experiência e a observação. Considerem um dos projetos de imenso sucesso artístico no Brasil, a OSESP, instalada na belíssima Sala São Paulo. Eis um exemplo de dinheiro público bem usado; se lhe cortassem essa fonte, talvez não sobrevivesse. Nossa elite endinheirada é mesquinha, ou pelo menos tem sido, para bancar tudo. Poderia, mas não faz.
A verdade é que em países mais civilizados que o nosso o Estado sustenta ou é parceiro de instituições, museus, óperas, teatro, feiras literárias, cinema, universidades. Continuo a não ter certeza de nada, mas não posso ser ingênuo a ponto de acreditar numa possibilidade imediata – repito e grifo: imediata – de financiamento privado de tudo o que importa na cultura. É o ideal, eu gostaria que fosse, mas não está perto de acontecer. Portanto, minha costela libertária é obrigada a conviver, ainda que a contragosto, com a irmãzinha mais feia, aquela que admite que, afinal de contas, o Estado existe e, se existe, que seja bem usado.
Então chegamos aos critérios.
O que, quem, quando, quanto – financiar? É um problema, de fato, mas não impossível de se resolver. As exigências têm de ser maximamente objetivas e impessoais. Existem, presumo, métricas e normas que sirvam para avaliar, aprovar ou negar dinheiro a este ou àquele projeto. Quais são? Eu não sei, não estudo o assunto, há quem estude. Existem modelos. Se nos países cultos o Estado participa em alguma medida do orçamento da cultura, com transferência direta de recursos ou isenção fiscal, isso me ensina que é possível fazê-lo sem o desleixo ético com que é feito por aqui. O problema, então, é do Estado (e do povo, e do artista) brasileiro. O pior do Brasil é o brasileiro.
Pois bem.
O presidente Jair Bolsonaro fez declarações (ele faz outra coisa?) controversas em mais uma comunicação com seus eleitores. Sim, porque ele fala aos eleitores e somente a eles. Toda a sua postura, suas tiradas, sua impostação, seus pressupostos remetem ao eleitorado cativo, à militância raivosa, não ao cidadão comum que, goste ele ou não, continua a ser o maior interessado nos atos e desatinos presidenciais.
Dentre as opiniões do presidente, uma se destaca: a de que o dinheiro público não deve servir a obras imorais como o filme que conta a história de Raquel Pacheco, a Bruna Surfistinha. Dos motivos, esse é o pior – e, sobretudo, o mais perigoso: o coeficiente de moralidade da obra.
Primeiro, porque os valores morais são em parte subjetivos. Existe um núcleo ético-moral objetivo, acredito nele, mas além desses princípios mais estritos, reconhecíveis por toda gente, em toda parte, existem outros mandamentos ou interdições que variam de cultura a cultura, de época a época, até de indivíduo a indivíduo. Eu considero imoral que um presidente, sob o pretexto de denunciar imoralidades, divulgue manifestações de escabrosas parafilias em sua página social. Ele o fez e acreditou estar fazendo bem.
Segundo, porque não é a régua do presidente que saberá medir o que é moral ou imoral. Senão por outro motivo, por este: quem disse que ele sabe o que é moral ou imoral? Eu considero imoral que um presidente privilegie o próprio filho com honrarias e cargos públicos. Ele privilegia e lhe parece muito moral.
A propósito, o filme em questão é, de fato, imoral? Nem por um momento passou pela cabeça do improvisado crítico que o filme pode ser a denúncia daquela imoralidade, ou a discussão daquele modo de vida, no exato sentido que o próprio presidente quis dar à discussão do já histórico – e para sempre anedótico – golden shower? O presidente fez denúncia ou propaganda da “chuva dourada”, ao divulgá-la? E a imoralidade humana, mesmo quando patente e escandalosa, não deve e não pode ser discutida ou representada?
Méritos artísticos e estéticos à parte, basta que miremos a história. Madame Bovary? Pedagogia do adultério. Os Sofrimentos do Jovem Werther? Provocou ondas de suicídios muito antes de 13 Reasons Why. Ulysses foi proibido em mais de um país e a culpa é do orgasmo de Molly Bloom. Lolita é apologia ou anatomia de uma perversão? E os livros racistas de Monteiro Lobato? E as violências em Homero e Shakespeare? E o antissemitismo em Céline? E a poesia da depravação em Jean Genet? E a prisão de Oscar Wilde? E a obra teatral do reacionário Nelson Rodrigues? A lista é interminável. A depender de como se vê, da sensibilidade tocada, do nervo exposto, dois terços da alta cultura são a representação, discussão e estilização de problemas morais. A imaginação moral se desenha também nos limites da imoralidade.
No fim das contas, quem decide o quê?
Não deixa de ser curioso – e, mais do que curioso, deliciosamente engraçado – que o realismo socialista, com sua estética abominável, no cinema e na literatura principalmente, tenha pregado e defendido ideias parecidas e espírito semelhante ao do nosso profundíssimo dublê de pensador da cultura. Para os soviéticos, tudo o que não era realismo proletário era imoralidade, decadentismo, valores pequeno-burgueses. Tudo o que não justificava a revolução ou o homem da revolução não interessava ao Estado. Ninguém podia torcer contra a União Soviética.
Confesso que não sei quais seriam as condições técnicas ideais para o investimento público em cultura, nem é dos meus assuntos prediletos. Tendo a gostar de artes e artistas que se fazem à margem, ainda que fracassem; o fracasso comercial, muitas vezes, é sinal de mérito artístico. E, muito cá entre nós, se o Estado decidir mesmo não financiar coisa nenhuma, não financie; minha costela libertária sorri. Acho até justo, existem argumentos a favor.
No entanto, reconheço que algum tipo de colaboração entre Estado, empresas e fundações é possível, de fato acontece mundo afora e pode fazer bem à cultura, ainda que pontualmente. Inventem ou copiem métricas, leis e parâmetros de países em que isso é bem estudado e funciona a contento. Nem todo mundo faz errado como nós. Porém, se tivermos mesmo de escolher, entre o gosto de Bolsonaro e a extinção da Ancine, fiquemos com a última opção. Para a cultura, antes só do que mal acompanhada.