Não me manifesto andando.
Sou um manifestante sedentário. Ou melhor: sou manifestamente sedentário. Enquanto uns andam, eu escrevo. Cada um faz o que sabe ou gosta de fazer. Preciso – e prefiro – ficar parado quando penso, escrevo e, de resto, que não haja muita gente berrando em torno. Questão de temperamento e preguiça. Aliás, a ideia de se manifestar publicamente, em si mesma, é bastante aborrecida.
“Ah, nossa, estou tão bravo que vou me manifestar, hein?!”
“Acordei tão cívico que vou agora mesmo exibir meu civismo pras moças, viu?”
Está bem, se manifeste aí, cidadão peripatético. Manifestou-se? Pronto, agora vamos respirar, enxugar o suor, pensar na vida.
Reconheço que as manifestações têm muito de saudável e até mesmo atlético. Se a moda pega, e parece que pegou, em breve academias de ginástica fecharão as portas. Não sei se a política vai melhorar, tenho dúvidas sérias, tenho certezas sérias, mas que todo mundo ficará magrinho e disposto, ficará.
Política pública para a saúde é isso: do it yourself!
Eu me lembro de quando muita gente saiu às ruas pedindo a cabeça e o aquilo roxo do Fernando Collor de Mello. Conseguiram. Ficaram conhecidos como os “caras pintadas”. Foram, há quem garanta, importantes para o impeachment.
Lindbergh Farias, aquelezinho, liderou as manifestações.
Anos depois, Lindbergh Farias virou o que virou. Ou melhor: virou o que sempre foi e quis ser. Gastou toda a revolta protestando contra um governo ruim, para depois protestar a favor de um governo pior.
Em 2013, nas tais “jornadas de junho”, estavam lá as multidões e os mascarados. Amigos meus, que respeito, foram às ruas. Eu não estava. Eu não fui. Fiquei em casa falando mal de todo mundo. Dos mascarados. Dos amigos. É meu jeito de me manifestar. Uns reclamam andando, eu reclamo parado.
Agora, pelo jeito, a manifestação virou parte do calendário litúrgico. Domingo sim, domingo não, tem gente na rua gritando e discursando e protestando contra e protestando a favor. Veremos quem será o Lindbergh Farias da vez. A história se repete, vocês sabem, insiram aqui o clichê. Pode acabar se repetindo rápido demais.
Não obstante, tenho dúvidas, tenho certezas, se essas manifestações frequentes produzirão resultado, além de baixar o colesterol ruim das pessoas e fortalecer as respectivas pernas.
“Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração”.
O efeito surpresa, o elã da revolta, o ethos da indignação, o tremelique do engajamento – tudo aos poucos pode acabar em tédio e desinteresse. Na Argentina, a Casa Rosada fica no centro de Buenos Aires, à mercê do povão. O governo é vizinho dos governados. Eles batem lata toda semana, protestam todo mês, e nem por isso viraram os Estados Unidos. Protestar é bom, votar direito é melhor.
Com a rotina, as manifestações grudam no cenário como papel-de-parede, e ninguém as percebe como manifestações. Movimento incessante se confunde com imobilismo. De repente, fica difícil distinguir a manifestação da micareta, o protesto do carnaval, a revolta contra da revolta a favor, a marcha nupcial da marcha da maconha, a Mancha da Gaviões, a parada cívica da parada gay. Emenda uma coisa na outra e Deus nos acuda.
Assistindo a tudo ontem, conspirando quietinho e derrubando Bastilhas daqui do sofá, sonhando revoltas e revoluções como um Robespierre de camisa polo e com os pés no pufe, me veio à mente um dos mais estranhos aforismos dentre os muitos aforismos estranhos do Kafka (Kafka mesmo, não kafta. Estou de regime, ao contrário do ministro da Educação, que só pensa em acepipes).
Transcrevo.
“Leopardos irrompem no templo e bebem até o fim os jarros de sacrifício; isso se repete sempre, sem interrupção. Finalmente, pode-se contar de antemão com esse ato, e ele se transforma em parte da cerimônia”.
Lindbergh Farias, leopardos, cerimônias, manifestações contra, manifestações a favor: tudo o que é demais enjoa, dizia minha mãe.