Não tivemos exatamente campanha, neste ano de 2018, mas chantagem eleitoral. Lula, da cadeia, manipulando os cavalos de seu tabuleiro de idiotas; Bolsonaro, do hospital, colhendo os estranhos frutos do atentado sofrido. Entre os dois extremos, um núcleo amolecido de candidatos que não souberam o que fazer num cenário tão caótico quanto este, na terra devastada que sobrou da Lava Jato.
O PSDB fez que afrontaria o PT, não afrontou; sugeriu que bateria no Bolsonaro, bateu tarde; não fez nem uma coisa nem outra e se apagou. Marina Silva desapareceu na própria incapacidade de liderar. Ciro implodiu a si mesmo como de costume. Os outros figurantes pontuaram pouco, ridículos em seu egocentrismo, e talvez o único que tenha de fato aproveitado a campanha foi João Amôedo, que teve desempenho melhor do que o esperado, em que pese o ineditismo da proposta.
De certa maneira, as condições já estavam dadas. As premissas dessa polarização foram colocadas desde o início. O que deveria ser oportunidade para um voto de convicção se transformou na profecia autorrealizável do voto útil. Quem tomou parte na justificativa intelectual da candidatura Bolsonaro, alegando que seria “ele ou o PT”, na prática fez o que sempre quis ter feito. O antipetismo, correto em si mesmo, serviu de desculpa para muitos que só têm antipetismo a oferecer.
Por isso defendo que o antipetismo é condição necessária, mas nem de longe suficiente, para refletir sobre a política nacional. Lendo, ouvindo, discutindo com tanta gente, percebo que muitas conversões de última hora foram jogo de cena mal ensaiado: todos já eram cripto-bolsonaristas à espera do melhor momento para aderir. Aderiram com gosto. Finalmente saíram do armário.
Mais do que convicções sobre uma carreira irrelevante, mais do que esperanças num liberalismo de oportunidade, mais até do que o medo do PT, o que levou tanta gente a cerrar fileiras com o Messias parece ter sido uma aspiração a pertencer ao grupo, uma irresistível propensão a mimetizar o comportamento alheio, um desejo de compartilhar o entusiasmo tribal comum às ideologias políticas. É evidente que nem todos agiram assim, há razões e razões, há eleitores e eleitores; porém, muitos agiram.
Tudo fica claro quando os mais céticos ou prudentes são acusados de “isenção”. Ou seja, quem rejeita e sempre rejeitou o PT teria de se comprometer com Jair Bolsonaro. Ou tudo ou nada. Ou isso ou aquilo. Temor e tremor. Caso o antipetista também critique Bolsonaro, será tachado como “isentão”. Isentão é o novo “fascista”, o novo “comunista”: adjetivo que se cola no interlocutor para invalidar seus argumentos sem precisar discuti-los. Se você critica a esquerda e também critica certa direita que lhe é oferecida, você é isentão. Você está em cima do muro. Você está pisando na credulidade das pessoas.
O problema é que o ginasiano apelido surgiu em meio às investigações da Lava Jato, do impeachment de Dilma Rousseff e da prisão de Lula. Era mais ou menos assim: o petista enrustido dizia que não era petista, “mas…”. Muito petista andava envergonhado de sê-lo, e procurava meios de justificar sua recalcitrância. “Não sou petista, mas… Lula está sendo injustiçado”; “Não sou petista, mas… exageraram no impeachment da Dilma”; “Não sou petista, mas… a Lava Jato é seletiva”; “Não sou petista, mas… e o Eduardo Cunha?” Assim por diante.
Isso tudo é bem diferente de rejeitar o PT e rejeitar o que se oferece como direita, com Jair Bolsonaro. Quem faz isso é tudo, menos isentão. Arrisco inverter a lógica desse truque retórico e dizer o seguinte: quem adere a determinado grupo, quem torce para o time que está ganhando, quem deixa de lado convicções longamente estudadas para se enturmar com o bando de amiguinhos, este sim é o isentão. É aquele que não aguenta cinco minutos de porrada moral. É aquele que precisa ver seus textos, suas ideias, suas esperanças chanceladas pela metade certinha do país. É muito mais fácil viver e pensar a política assim: na dúvida, vou para os braços da torcida. Na dúvida, capitulo. Na dúvida, finjo que “Não gosto do Bolsonaro, mas…”.
Considero que, num primeiro turno que não existiu, espécie de W.O. político e desperdício de tempo e dinheiro, votar num candidato “menor” é tão válido quanto votar em quem está na liderança. Também julgo válido o voto nulo, a recusa de escolher entre opções previamente colocadas num elenco ruim. E vou além: na democracia, considero igualmente valoroso o ato daquele que nem mesmo anula o voto, mas se recusa a participar do jogo. O exercício eleitoral é um direito, mais que um dever. Recusar os próprios termos também é um jeito de fazer política, certo tipo de anarquismo conceitual não-violento.
Por todas essas razões, acusar de covardia aqueles que não votam em nenhum dos protagonistas de um momento tão desastroso é, no fim das contas, sinal de como o pensamento democrático tem se limitado ao bingo das urnas, ao suor das ruas e a não muito mais do que isso. Populismo de um lado, populismo de outro; carisma de um lado, carisma de outro; redenção de um lado, redenção de outro; desculpas esfarrapadas de um lado, desculpas esfarrapadas de outro. No empobrecido debate político contemporâneo, brasileiro principalmente, esquerda e direita têm mais afinidades e são mais parecidas entre si do que se quer acreditar, e por isso o eleitor acaba reduzido a um objeto matemático cujas propriedades foram descobertas por August Ferdinand Möbius: uma excêntrica faixa que percorre a si mesma e consiste em ter um lado só.
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