João Gilberto| Foto:

A morte do João Gilberto, aos 88 anos, nos lembra de que outro país foi possível, antes das estranhíssimas escolhas que fizemos (ou fizeram por nós). Ali na encruzilhada entre uma ditadura em ato e outra em potência, entre o crescimento econômico e a degradação moral, havia possibilidades. Perdemos todas. Esquecemos o que mal acabáramos de aprender.

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Num dado momento, conviviam entre si, e convivíamos com eles, nos jornais e nas revistas, nos festivais e no rádio, gente do tamanho do João Gilberto e do Tom Jobim, do Bandeira e da Cecília. Nosso reacionário à época era o Gustavo Corção, doce e severo na mesma medida, que acreditava sem esforço tanto na esfericidade da Terra quando na ressurreição de Cristo. Era com o Corção que o Nelson Rodrigues, anjo e pornógrafo sem medida, trocava cartas, provocações e afetos por meio da imprensa. Imprensa que tinha as crônicas do Drummond e do Sabino, as cartas da Clarice para o Lucio. Imprensa mainstream que tinha como alternativa o Pasquim; que era feita por tanta gente boa que mencionar um, dois, dez é esquecer outros dez, trinta, cinquenta.

Nem sempre o Brasil foi tão sem graça.

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Houve tempo em que, do morro à praia, do choro ao samba, do dó de peito ao sussurro, muita coisa quis nascer e nasceu. Havia espaço para mais beleza – mais de um tipo de beleza.  O espaço era tão grande que nele cabia até a voz pequena, voz que era uma corda a mais de violão, do gênio que foi tudo, menos óbvio, e fazia arte pela arte porque, como dizia o Ferreira Gullar, a vida não basta. Tivemos um país que saudava o rigor do João Gilberto como direito adquirido e indiscutido.

Houve tempo em que tínhamos o Heitor Villa-Lobos, que se confundia com o Tom Jobim, e este com o Vinícius e o Toquinho, e todos com o uísque e a Praia de Ipanema; em que a Elis Regina ainda rasgava as cordas da alma; em que o Glauber Rocha filmava Deus e o Diabo; em que o Guimarães Rosa fabulava o sertão metafísico, enquanto o Graciliano Ramos secava a gordura do idioma; tempo em que o iê-iê-iê e a Tropicália faziam o barulho que deviam fazer para lembrar ao distinto público que o Brasil, ditadura à parte, não tinha virado esse armazém de Secos & Molhados que virou.

Tanta coisa acontecendo, tendo acontecido, num intervalo de poucas décadas, numas poucas décadas em que o Brasil foi o que poderia ter sido, anos depois do futuro anunciado por um grato – porém desesperado – Stefan Zweig, que se matou no paraíso porque não soube, não pode, não quis esperar nem pagar para ver o resultado da profecia.

A morte do João Gilberto é também a morte de uma certa ideia de Brasil, de um certo estilo de Brasil, de uma sorte de Brasil que esteve ao nosso alcance e virou azar, e então desapareceu, como sonho do qual se acorda antes de sonhado com suficiente nitidez para ficar retido na memória por mais tempo.

Preferimos outra versão de nós mesmos, tivemos outras prioridades e urgências, outras facilidades e preguiças, outras contas a pagar e a receber, e não exercitamos a paciência com cuidado suficiente para os acordes dissonantes do João, as rimas toantes do Cabral e a sociologia destoante do Freyre.

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Havia sofisticação e requinte, sim senhor, um dia soubemos usar os complicados talheres da alta cultura, que nem parecia assim tão alta, de tão próxima estava, pois nada ficava longe das mãos, dos olhos e dos ouvidos do povo. Eles tocavam no rádio, publicavam no jornal, passavam na tevê, discutiam nos Clubes da Esquina.

João Gilberto morreu e levou consigo um pedaço grande da memória imaginada de um país diferente, que ele soube criar, que ele soube mostrar ao mundo como poucos e como raras vezes antes e depois. País de uma beleza terrível, beleza de um país frustrado, um país-do-quase, um país irrealizado como a conclusão lógica do mais fantástico drible do Pelé, em 70, no uruguaio Mazurkiewicz.

Chega de saudade, ou que a saudade nos chegue.