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A respeito da intrincada questão do (direito ao) armamento da população civil, existem muitas dúvidas e poucas certezas; mais palpites que convicções. Problemas sociais são complexos e, até certo ponto, irresolúveis.

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Tal complexidade impõe limites às nossas pretensões científicas. Os objetos de que trata a matemática são maximamente exatos e estáveis; os objetos de que tratam ciências sociais como a economia, o direito e a ética são minimamente exatos e estáveis. Os objetos sociais – eu, você, o João e a Maria – são também sujeitos sociais: interagimos com nossos próprios instrumentos, medimos e somos a medida de todas as coisas.

O preâmbulo importa para lembrar que os direitos e os deveres nem sempre são óbvios e autoevidentes. Artigos de lei não são fórmulas químicas, ideologias não são leis gerais da física. Quando se trata da interação entre seres humanos, as variáveis são tantas que parece haver mais exceções que regras. É o caso do direito (e dos efeitos) à posse e ao porte de armas.

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Antecipo minha posição sobre o tema, ainda que a considere precária e fundamentada numa premissa filosófica: sou a favor do direito – por princípio – à autodefesa. Por conseguinte, às vezes, o direito fundamental à autodefesa depende do direito acidental ou derivativo de possuir armas de fogo. Avanço e arrisco dizer que há inclusive um dever à autodefesa – falta-nos uma cultura da autodefesa –, e abrir mão desse dever e outorgá-lo ao Estado é perigoso e contraproducente.

No entanto, compreendo o alcance dos argumentos contrários. Em linhas gerais, quem defende o direito à posse e ao porte de armas o faz apelando a princípios filosóficos, políticos e mesmo constitucionais; quem nega a validade indiscriminada desse direito apela às possíveis consequências que o aumento do número de armas em circulação provocaria.

São duas posições moralmente (e intelectualmente) defensáveis. Há um debate teórico em jogo, que poderia ser espelhado noutros contextos. (O mesmo não valeria para a liberação do consumo de drogas?)

Seja como for, o que me causa espanto é a afoiteza como o assunto tem sido discutido, e a baixa qualidade das discussões. O decreto assinado por Jair Bolsonaro conseguiu a proeza de unir o Brasil novamente: ninguém gostou.

Quem é “contra as armas” reclama da flexibilização; quem é “a favor das armas” reclama da pouca flexibilização. Um dos mais consistentes especialistas sobre o assunto, Bene Barbosa, não gostou nada e ainda teve de ouvir reprimendas de dois dos primeiros-filhos, consistentes estudiosos em polêmicas inúteis e barracos virtuais.

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No decreto presidencial, os critérios não são muito criteriosos. Um dos mais inusitados refere-se à relação entre o direito à posse e a taxa de homicídios por habitantes. Dado um número mínimo de homicídios numa cidade, o cidadão passará a ter o direito de possuir armas. O parâmetro é dado pelo Atlas da Violência de 2018, que remete aos números de 2016, e a ideia parece intuitiva: em regiões mais violentas é justo que o cidadão tenha arma para se proteger.

O problema é que, na prática, o efeito do critério será o seguinte: teremos de torcer para um aumento na taxa de homicídios de uma determinada região, ou ao menos a estabilização dessa taxa, desde que acima do mínimo exigido. A não ser que o Atlas da Violência tenha servido como ponto de partida e de chegada: aqueles números, naquele momento, valerão para outros números e outros momentos. Se for este o caso, então o Atlas é perfumaria estatística; diminuindo ou não a violência, valerão os números de 2016. Logo, não precisaria haver Atlas nenhum.

Ou, como gostam de acusar os exaltados eleitores do Bolsonaro, teremos todos de torcer contra o Brasil. Mais precisamente, torcer para que o Brasil continue violento para que possamos ter armas. Se na minha cidade o número de homicídios por tantos mil habitantes cair, meu direito à autodefesa com armas de fogo será colocado em xeque? Uma verdadeira desgraça; ou Graça, já nem sei mais. Meu palpite? Bolsonaro precisava achar qualquer número para estabelecer algum parâmetro. Achou. Pelo sim pelo não, um prodígio de técnica jurídica, que só dá munição aos detratores.

Existem muitas outras nuances nessa quizumba toda. Estatísticos e economistas discordam sobre as pesquisas acerca do impacto do aumento do número de armas legais entre a população. No programa Última Análise, da Gazeta do Povo, Pedro Menezes, Mario Vitor Rodrigues, Pedro Fernando Nery e Cristina Graeml levantaram pontos interessantes. Todos eles, se entendi bem, torcem o nariz para a liberação.

Pedro Menezes garante que as últimas meta-análises trazem números que desagradam os defensores do direito: mais armas significariam, sim, mais crimes. Não conheço as pesquisas e já assumi, para fins argumentativos, que minha defesa não é consequencialista, muito embora esses dados, se verdadeiros, sirvam como objeções oportunas. Dados que podem variar muito a depender do contexto e do viés de confirmação.

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Não me parece razoável ignorar também outros aspectos; o sociológico, por exemplo. Já não fazem mais sucesso os livros de psicologia das massas e dos povos, estudos que procuravam demonstrar haver uma espécie de consciência coletiva de uma pátria, algo como “o jeitinho brasileiro”, “o entojo do francês”, “o espírito americano”, “o misticismo biruta dos russos”.

De todo modo, as reiteradas experiências políticas e sociais de uma coletividade mais ou menos organizada e contínua historicamente podem se transformar, com o tempo, numa caracteriologia pátria, não por existir um consciente ou inconsciente coletivo pairando nos céus da nação, mas porque moldamos e somos moldados pelas respostas e interações reiteradas com o ambiente em torno. O hábito faz o monge; o mau hábito faz o brasileiro.

A história política, a submissão ao direito, o cuidado com o patrimônio urbano e artístico, as reações diante de tragédias e eventos inesperados, tudo isso varia de país para país, a depender de como os indivíduos lidam com regras, normas, autoridades, princípios, códigos, convivência. Japoneses são inabaláveis até quando o mundo lhes cai na cabeça; brasileiros são capazes de chacoalhar o mundo só para ver o que acontece. A discussão sobre o direito às armas envolve princípios, consequências, mas também um contexto social em particular.

Facilitar a posse de armas pode ser defendido como direito individual: esta é minha convicção, que precisa ser refinada dialeticamente. Nunca advogarei o utilitarismo quando minha vida, ou da minha família, estiver em perigo. Munição pouca, ladrão que vá primeiro. No entanto, o acesso às armas não é, nem será, política de segurança pública. Há muita coisa a ser feita: combate à corrupção policial, treinamento, equipamento e inteligência; reforma profunda nos códigos de direito penal e de processo penal; celeridade nas investigações e nos julgamentos; certeza de punição; desmantelamento do crime organizado etc.

A violência epidêmica no país é problema grande demais para ser atacado com improvisos e para ser combatido com soluções apressadas, com a desculpa de que são promessas de campanha. Direitos, princípios e consequências à parte, arma de fogo é um objeto um pouco mais controverso que um liquidificador. Bolsonaro se comprometeu a tratar do assunto mais detidamente por meio do Congresso. Democracia é para isso mesmo. Porém, como ensinou o americano HL Mencken, “para todo problema complexo existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada”.

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