No conto “A carta roubada”, de Edgar Allan Poe, o sagaz Auguste Dupin pondera sobre a melhor maneira de se esconder um objeto (e, por óbvio, de encontrá-lo); no caso, uma carta. O esperado é escondê-la; tirá-la da vista; enfiá-la nalgum canto; guardá-la num cofre etc.
Ocorre que, por isso mesmo, por ser o esperado, os peritos esquadrinharão o aposento e investigarão nos esconderijos, nos cantos, num possível cofre. Farão uso de instrumentos modernos e todo tipo de técnicas e métodos; suspeitarão dos mais improváveis destinos.
Então o herói conclui, a contrario sensu: a melhor maneira de se esconder uma carta é deixá-la à vista, talvez sobre a mesa de centro; é ocultá-la na multidão doutros objetos e, em especial, doutras cartas; é induzir o perito a não reconhecer o que está explícito, pelo fato de estar explícito; provocar nele uma cegueira psicológica, ao zombar de sua inteligência.
Parece-me que, se essa astúcia vale para cartas, vale também para as interdições morais, os livros, as heresias e as ideias. Que jeito melhor há de neutralizar uma transgressão senão fazendo pouco caso dela? Até mesmo a pornografia pressupõe o recato, e a ansiedade por quebrar regras é diretamente proporcional à quantidade (e ao rigor) das regras a serem quebradas.
Quem tomaria conhecimento da representação gráfica de um beijo numa história em quadrinhos, vendida entre milhares de outras histórias, milhares de outros livros, ignorada em meio a milhares de outros beijos, outras representações, outros personagens, numa feira de livros? Ninguém saberia nem se importaria.
Bastou um gesto intempestivo para chamar a atenção do público para algo que não chamaria a atenção de ninguém. Não só os livros foram vendidos, como o público afluiu ao evento com a força dum tsunami moral. Nunca é bom estimular a indignação alheia.
O desavisado censor, ainda que não quisesse, reavivou o interesse por livros na capital fluminense. A “carta” estava ali, escondida à vista de todos, até o momento em que ele pretendeu escondê-la. Tivesse lido Edgar Allan Poe, talvez não cometesse o erro. Tais são os efeitos impremeditados de certas ações, bem-intencionadas ou não.