É compreensível que a vitória nas urnas dê aos vitoriosos a sensação de que tudo podem, tudo devem, e de que a democracia é aquele regime em que eu venço, nós empatamos e você perde. A vontade popular se coagula em poder político e o poder político faz a vontade popular. Felizes para sempre.
Alguns interpelam, como se berrassem obviedades: “Acaso a vontade do povo pode ser confundida com ditadura?!” Infelizmente a reposta é sim, pode, e com frequência se confunde. Quem lê Jean-Jacques Rousseau sabe do que se trata.
A volonté générale é o adubo de muita manifestação autoritária e violenta. O autoritarismo, aliás, poucas vezes nasce contra o povo, quase sempre nasce em seu nome, e se funda na ideia de que o líder conduz o povo ao destino a que o povo aspira. Mais: na ideia de que as vontades de líder e povo se confundem ao ponto da indistinção.
Com isso quero dizer que essa é a intenção manifesta do clã Bolsonaro? Até onde a vista alcança, apesar de sua falta de jeito ou de gosto, Jair Bolsonaro parece estar de acordo com os termos do compromisso: Constituição, divisão de poderes, oposição, imprensa livre. Chatices.
Entretanto, essa aceitação não lhe é tão natural. Ele não toca de ouvido. Quilômetros de votos, declarações, atos e omissões ao longo dos anos, e de anos nem tão distantes assim, desmentem sua melhor educação política. Ninguém foge da própria biografia.
O que me preocupa, mais do que o presidente, é boa parte do eleitorado radical que o acompanha. Estes, sim, parecem assumir que democracia é a bigorna com a qual se amassa a cabeça dos perdedores. Podem não representar a maioria, mas não são poucos. E são entusiasmados.
Tudo se traduz na convicção de que, vencidas as eleições, a razão de quem venceu é a única razão a ser levada em conta, como se não houvesse outros debates, ideias, conflitos, visões e razões a se considerar. Como se o resultado das urnas fosse passe-livre para quaisquer efeitos e resultados depois delas – em nome do povo, para o povo, pelo povo.
No mundo civilizado, não é.
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