“Deixo aos vários futuros (não a todos) o meu jardim dos caminhos que se bifurcam.”
Sobre minha crítica ao filme Bandersnatch – ou, mais precisamente, à proposta de Bandersnatch, que não vi –, dois leitores fizeram comentários bastante pertinentes. Agradeço-os por isso. Entretanto, acredito que não tenham compreendido meu ponto; talvez eu não tenha sido claro o suficiente. Se não vi o filme e ainda assim tive a cara-de-pau de criticá-lo, a pista só pode ser outra. Peço licença a eles para comentar os comentários e criticar as críticas.
A premissa é estabelecer algum nível de interação com o espectador (“Escolher o ato que desencadeia os atos”). Notem: a proposta é que exista interação, que o espectador construa ou participe do filme enquanto assiste ao filme. Se, na prática, o autor termina por pregar uma peça no espectador (“Não está ao nosso alcance controlar o desenrolar”), isso não desmente o fato de que a frustração só se dá porque ele (autor) propõe a pegadinha, e quem interage (o espectador) se sujeita a ela. Como em um número de mágica: todos sabem que estão sendo ludibriados, mas acham graça do mesmo jeito.
Quem assiste, quando aperta o play, sabe que existem escolhas a serem feitas (“O filme te traz essa sensação de escolha”). Assim começa o filme. Que essas escolhas terminem por se revelar infrutíferas, dada a construção ardilosa do roteiro, não significa que não foram feitas; significa apenas que elas não tiveram o resultado narrativo esperado (“…é exatamente o contrário, não existe escolha”).
Bandersnatch só gerou a repercussão que gerou por causa do inusitado (nem tão inusitado) da proposta. A brincadeira, o jogo, o faz-de-conta, as regras iniciais consistem nisso: o espectador escolhe, o diretor mostra ao espectador que sua escolha conduz o personagem ao mesmo destino. Ele dá uma lição de moral na audiência. “Viu só, espertinho, como não adianta nada escolher?”
Porém, isso acontece sob a condição de que o espectador aceite escolher alguma coisa, tente se relacionar com o filme, concorde com a premissa de que tem de optar por alguma das premissas. É um truque: o criador contraria as intenções de quem escolheu; mas, para que isso aconteça, ele tem de primeiro dizer a quem assiste: “A escolha é sua”.
A validade do argumento (o livre-arbítrio é uma ilusão) depende das tentativas de dar outro curso aos acontecimentos. Essas variações podem desembocar num mesmo destino trágico e infeliz, mas a prova de que é assim com o filme (e com a vida) só se tem porque no filme (e na vida) temos mais de uma possibilidade inicial à disposição. A propósito, sobre o livre-arbítrio, o que há de correto é truísmo; e o que sobra do truísmo não é necessariamente correto. A tese central de Bandersnatch, niilista e desencantada, é mais petição de princípio que tese.
O fato de que, insisto, a escolha de quem assiste termine por não corresponder à solução esperada na vida do personagem acaba sendo irrelevante (para a minha crítica). Há coisas a escolher no filme, não há? Se essas coisas desencadeiam eventos inesperados, digamos, “dentro” do filme, na vida do personagem; se, portanto, a escolha de quem vê leva a resultados outros que não os previamente negociados, isso faz parte do conteúdo narrativo, da “moral da história”, da artimanha na montagem, mas não de sua proposta original de interação. A interação é fundamental para que a brincadeira tenha graça e tenha início. E é esta interação – a própria ideia de filmes interativos e da obsessão com a interatividade – que procurei comentar e criticar.
Acredito que exista, em nossa cultura, uma verdadeira mania de interatividade. Os aparelhos de televisão são interativos, a participação em reality shows é interativa, as mídias sociais o são e, cada vez mais, são interativas a arte e a indústria cultural, num processo de gamificação da vida, em que tudo deixa de ser contemplado e vira entretenimento participado. Tive o cuidado de, na crítica original, reconhecer que a proposta pode funcionar bem para este filme em particular, que podem existir méritos artísticos neste filme em especial, mas o pano de fundo é o mesmo: ele é um pouco sintoma daquilo que denuncia.
Gosto um bocado das muito velhas e muito ultrapassadas ideias de autoria e fruição. O autor é o autor, o espectador é o espectador. Prefiro que minha relação com os objetos estéticos continue a ser de passividade-atuante, de contemplação-ativa, de recepção-atenta, porém nunca, ou muito pouco, de interatividade. Como disse o leitor, “acredito que esse formato de filme não será muito utilizado, até porque é bem chato após longas repetições”. Pois é.
Espero dos escritores, artistas plásticos, compositores, realizadores de cinema e cozinheiros um tipo de obra que não se dobre às minhas intenções; sobretudo, que não dependa de mim para fechar seu argumento ou sua verdade. Num mundo tão ansioso e viciado em movimento, quero de um filme e da vida tão somente a opção de me acomodar no sofá, fazer umas poucas escolhas gerais (idioma, profissão, legenda, casamento), apertar o play e esperar para ver o que acontece, horas ou anos depois, até que a morte coloque o ponto final em tudo e Deus faça subirem os créditos.