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Gustavo Nogy

Gustavo Nogy

Da cidadania à carteirada

Caracala, imperador romano (Pixabay imagens) (Foto: )

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O antropólogo Roberto DaMatta, no livro Carnavais, Malandros e Heróis..., segue a picada aberta por Sérgio Buarque de Holanda, que caracteriza o brasileiro como um tipo fundamentalmente cordial.

Ainda hoje há confusão sobre o achado buarquiano. Cordialidade, aqui, não deve ser entendida no sentido popular, de afabilidade ou propensão ao tratamento amigável, mas sim no mais próximo do etimológico, cordial, cordis, coração. Passionalidade, sentimentalismo, emoção barata.

O brasileiro acha difícil lidar com a impessoalidade que se espera da vida pública. Os conflitos cívicos, políticos e profissionais são quase sempre entendidos como brigas em família. A crítica é vista como ofensa. A regra nunca é regra, é sempre exceção a meu favor.

Essa disposição se mistura aos preconceitos de classe e à burocracia gorda e ineficiente que nos sobrou do império, num país que, antes de ser republicano, é sobretudo cartorial.

Ora, como nosso Estado não funciona a contento, como as coisas não andam direito, como as instituições não resolvem o nosso problema, o que vale é a indicação, a malandragem, o empurrão, o jeitinho ou, como acontece tantas vezes, a muito conhecida “carteirada”.

Carteirada que é a codificação do ethos brasileiro: “Sabe com quem está falando?!” Do fiscal ao presidente, da dona-de-casa à primeira-dama, todo mundo quer se aproveitar do carimbo, do chicote, do crachá, do parentesco, do dinheiro, do diploma, do porte, para obter licenças ou se livrar de obrigações.

É mais ou menos isso o que se depreende do episódio em que um casal é abordado durante uma fiscalização sanitária, no Rio de Janeiro, e o agente da prefeitura é obrigado a ouvir a frase que resume dez tratados de sociologia: “Cidadão não, engenheiro civil, formado, melhor do que você”.

Ainda que fiscais de prefeitura possam ser inconvenientes e autoritários, e frequentemente o são, a moldura simbólica desse conflito é bastante reveladora: diante de uma regra que deveria ser compreendida como regra, porque havia motivos reais para tanto, reage-se como se se tratasse de questão de foro íntimo.

É também curioso – e sintoma de ignorância – que se contraponha, à condição de cidadão, a profissão de engenheiro civil. Convenhamos, um diploma de engenharia civil nem de longe é coisa de que se orgulhe em voz alta.

Por fim, o ato falho de quem desvaloriza o status de cidadão, nobre desde os gregos e romanos, é ainda mais divertido. De fato, a postura não é mesmo de cidadão, com todas as conotações políticas e éticas do termo.

Na Grécia e em Roma, cidadão era homem livre e tinha direitos políticos assegurados. Quem não era cidadão era escravo, servo, mulher, estrangeiro, bárbaro, gente de segunda-classe. Era, por assim dizer, uma espécie de engenheiro civil.

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