por Gilberto Morbach
É chegada a hora de, ao menos por um momento, voltar ao positivismo. Afinal, se é verdadeiro aquilo que afirmei quando comecei por recomendar aqui The Concept of Law, de Hart — que compreender a teoria do direito passa necessariamente por uma compreensão adequada acerca do que é o positivismo jurídico —, também é verdade que o positivismo não foi (ou é) articulado apenas por Hart e seus seguidores, apenas no contexto do common law.
Compreender a teoria do direito passa necessariamente por uma compreensão daquilo (ao menos de um pouco daquilo, considerando a vastíssima obra) que diz Hans Kelsen. Se Hart é o rosto do positivismo anglo-saxão, Kelsen é o grande representante do positivismo continental; se The Concept é uma obra necessária, também o é a Reine Rechtslehre, a Teoria Pura do Direito. Para começar a apresenta-la, ninguém melhor que o próprio autor:
Como se mantém completamente alheia a toda política, a Teoria Pura do Direito afasta-se da vida real... Os fascistas declaram-na liberalismo democrático, os democratas liberais ou os sociais-democratas consideram-na um posto avançado do fascismo. Do lado comunista é desclassificada como ideologia de um estatismo capitalista, do lado capitalista-nacionalista é desqualificada, já como bolchevismo crasso, já como anarquismo velado. O seu espírito é — asseguram muitos — aparentado com o da escolástica católica; ao passo que outros creem reconhecer nela as características distintivas de uma teoria protestante do Estado e do Direito. E não falta também que a pretenda estigmatizar com a marca do ateísmo. Em suma, não há qualquer orientação política de que a Teoria Pura do Direito não se tenha ainda tornado suspeita. Mas isso precisamente demonstra, melhor do que ela própria o poderia fazer, a sua pureza.[1]
Essa proposta remete a um aspecto tão óbvio quanto ignorado em algumas obras: o quanto um título é capaz de revelar sobre o livro a que dá nome, sobre aquilo a que se propõe. Kelsen não estava articulando uma proposta de um direito puro, mas uma teoria pura do direito. Afinal, sua preocupação era oferecer uma resposta ao problema de, de um lado, propostas teoréticas sobre o direito fundamentalmente contaminadas por ideologias políticas e moralizações, e, de outro, tentativas que buscavam reduzir o fenômeno jurídico às ciências sociais em sentido lato e abstrato. Diante disso, e contra isso, Kelsen oferece uma proposta de teoria pura: uma teoria baseada na cognição tendo já o direito como fundamento. A pureza teórica é o princípio metodológico que serve de base à empreitada kelseniana.
Com esse princípio, Kelsen vai oferecer respostas e explicações àquilo que lhe parecia mais fundamental na teoria do direito: uma explicação sobre a ideia de legalidade, sobre a normatividade do direito; uma explicação sobre o sentido jurídico-normativo das proposições dotadas desse caráter, bem, jurídico. O que faz uma lei ser uma lei? O que torna o direito direito? Também essa explicação, como toda a proposta de Kelsen, vai ter uma espécie de princípio básico, por assim dizer: a Grundnorm, a célebre norma fundamental de Hans Kelsen.
Basicamente, a ideia é a seguinte: no direito, os atos adquirem sentido jurídico-normativo a partir de outra norma jurídica que assim determina. O direito é criado e/ou modificado se o ato criativo/modificativo é feito de acordo com outra norma, hierarquicamente superior no sistema jurídico, que autoriza essa criação/modificação. Essa norma superior, por sua vez, também é válida se criada de acordo com outra norma, hierarquicamente superior no sistema jurídico, que autorizou sua promulgação. Se, no Brasil, o Congresso Nacional é competente em matéria legislativa, isso é porque a Constituição Federal assim determina. Mas o que faz a Constituição ser direito? Dito de outro modo: quando, afinal, essa cadeia termina? Daí a ideia da Grundnorm: uma norma básica que é pressuposta, que é uma hipótese que representa a base subjacente a um sistema jurídico servindo-lhe de condição de possibilidade. Um marco zero.
A norma fundamental não é, como as outras, uma norma de direito positivo; é uma construção teorética que funciona, ao mesmo tempo, como (i) hipótese epistemológica[2]e como (ii) princípio epistemológico. Como (i) hipótese, significa a norma presumida hipoteticamente pelo cientista do direito para que se possa considerar válidas as normas de direito positivo; como (ii) princípio, a Grundnorm tem como conteúdo a afirmação das condições a partir das quais as proposições podem ser definidas com mais rigor como proposições jurídicas.[3]
Para compreender melhor a questão, nada melhor do que ir ao original. O leitor que aceitar o maravilhoso desafio de ler a Teoria Pura do Direito, de Kelsen, não vai apenas compreender a Grundnorm; vai ler sobre as relações entre direito e moral, direito e religião, direito e coerção; vai conhecer uma teoria das normas e dos conceitos jurídicos mais fundamentais, das relações entre essas normas próprias; uma teoria das relações entre os sistemas jurídicos e uma magistral teoria da interpretação no direito.
Hans Kelsen, afinal, é um autor fundamental para a teoria do direito. Isso precisamente demonstra, melhor do que ele própria o poderia fazer, a sua genialidade.
[1] Kelsen, Hans. Teoria Pura do Direito, 8.ª ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, pp. xiii-xiv.
[2] Por uma questão de honestidade intelectual, é preciso dizer aqui que há, entre os scholars, discussões sobre os avanços, os desenvolvimentos, as diferentes fases da epistemologia kelseniana. Há quem sustente (Chiassoni, por exemplo) que, em uma fase final, Kelsen não mais trataria da Grundnorm como uma hipótese, mas como uma ficção epistemológica. Essa discussão, de todo modo, não é necessária para aquele que ainda procura uma introdução.
[3] É natural que, aqui, o leitor que tem acompanhado acabe por lembrando da regra de reconhecimento hartiana de que tratei nas resenhas anteriores. Há discussões fantásticas sendo desenvolvidas até hoje apresentando as diferenças e as eventuais semelhanças entre a rule of recognition, de Hart, e a Grundnorm, de Kelsen.