Charles Keene (OBI)| Foto:

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Dividir para reinar. Mais que propriamente de unidade, talvez a dominação política careça de um sem-número de disputas internas, de pequenas dissensões, de rusgas, de espírito de delação, de cizânia, de ânimos acirrados, de traições, de sanha persecutória, de suspeitas constantes e generalizadas, de inimizades, de orgulhos e desprezos, de julgamentos sumários e mutuamente contraditórios. O ditador surge como líder no momento em que a comunidade se fragmenta e clama por quem a represente e ponha fim às contradições. Não sem alguma ironia, a democracia, longe de ser o antídoto para esse espírito de “guerra de todos contra todos”, pode perfeitamente se tornar num dos seus mais eficazes ingredientes.

A instrumentalização do orgulho coletivo se manifesta entre uma nação e outra, ou entre grupos de uma mesma nação. O advento do Estado moderno, não poucas vezes de recorte artificial e jurídico-burocrático, promove conflitos externos na exata medida em que fecha fronteiras, redesenha territórios, junta comunidades linguísticas e culturais incompatíveis ou separa forçosamente grupos afins. Também internamente, dentro das fronteiras do Estado, tais cisões são patrocinadas. Se numa democracia a maioria relativa decide quem governará a todos, findas as eleições os perdedores podem ser tratados como inimigos públicos. A democracia é o sistema perfeito para quem venceu.

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Com maior ou menor sucesso — e aprovação ora explícita, ora tácita, dos eleitores —, é sobre essa base que os aspirantes a cargos políticos logram conquistar e, se possível, perpetuar-se no poder. Ditadores são “homens do povo”, ou pretendem falar em seu nome. Suas ideias, disposições políticas, adesões e rejeições ideológicas, maquinações partidárias e visão de mundo consistem em pouco mais que arremedos de interesses, crenças e superstições presentes num determinado tempo histórico, aceitos (ou convenientemente ignorados) entre os membros de uma sociedade. O holocausto foi precedido pela sórdida mitologia segundo a qual a natureza de uns é fundamentalmente diferente da natureza de outros, e de que tal distinção é substancial e não meramente tópica ou acessória.

Admitidas as diferenças, e admitidas como substanciais, não é preciso esforço ou liturgia para que certas nações, ou grupos dentro de uma nação, tomem-se como modelo de conduta, cultura e política. Não por acaso, aqueles que detêm o poder acreditam-se sempre como a variação boa, saudável e promissora daquelas diferenças. Reconhecidas as distinções entre um grupo e outro, entre um indivíduo e outro, ninguém há de supor que a diferença do outro seja a melhor, a mais pura ou politicamente razoável.

(continua)