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O diretor Fernando Meirelles é enfático ao defender que Dois Papas não é bem uma cinebiografia e que, portanto, as prováveis discordâncias ou incompreensões devem ser debitadas na conta da ficção. Com isso ele pretende justificar sua obra diante das críticas que porventura lhe forem feitas. Ocorre que, quando se quer vender uma ideia, a ficção é mais eficaz que a realidade. Aposto que ele sabe disso.

Assisti a Dois Papas e, muito embora seja até simpática ao cristianismo, a visão de Meirelles é a típica visão de quem sofre de astigmatismo intelectual. Como um terraplanista que avaliasse um tratado de astrofísica, não há verdadeiro interesse no objeto. A simpatia pela figura de Francisco reforça, por contraste, a antipatia pela Igreja que Francisco lidera, como se ele fosse novidade boa numa instituição costumeiramente ruim.

O filme imagina os encontros (não acontecidos, ou não acontecidos daquela forma, com aquela frequência) entre o papa Bento XVI, com sua vaidade e seu cálculo, e um voluntarioso cardeal Bergoglio, cheio de preocupações sociais e reformistas. Os diálogos reduzem toda a complexidade do catolicismo a um esquema que não o contém, como se fossem a reedição desidratada do memorável embate entre o obscurantista Leo Nafta e o humanista Lodovico Settembrini, n’A Montanha Mágica, de Thomas Mann.

A Igreja não pode ser julgada de maneira tão desajeitadamente anacrônica: política ou metafísica, direita ou esquerda, conservadora ou reformista, latina ou europeia, fechada ou aberta ao mundo. Primeiro, porque muitas dessas chaves interpretativas não lhe dizem respeito, nem mesmo historicamente; segundo, porque ela abarca e antecipa os pontos fortes do que há de verdade nessas chaves.

Mesmo a ideia de que Bergoglio seja um socialista caloroso, que veio superar o dogmatismo gelado de Ratzinger, é de uma ingenuidade constrangedora. Nem o argentino é de fato socialista, nem o alemão é reacionário. Aliás, foi na obra do então teólogo Ratzinger que se buscou inspiração para mudanças importantes no Concílio Vaticano II, considerado reformista.

O que existe, portanto, é apenas a diferença de carisma (no sentido de vocação) de um e de outro; a distinção de personalidades que se complementam em vez de se negar. O que é bastante natural: a Igreja – e seus papas – é feita de homens como todos nós. São Francisco não se parecia com São Tomás. Santa Teresa d’Ávila não se confunde com Santa Teresinha do Menino Jesus. Bergoglio e Ratzinger – Francisco e Bento – são refrações de uma mesma luz.

Meirelles talvez ignore, ou pouco se importe com isso, mas o cristianismo não trata somente das injustiças do mundo, apartadas da dimensão espiritual. Ao contrário, vê nas injustiças terrenas o resultado do esquecimento celestial. O homem não é mau entre os homens porque pensa demais no céu e se esquece da terra; antes, é mau porque pensa somente na terra e se esquece com frequência do céu.

A dimensão vertical do cristianismo católico – o rito, a mística, a metafísica – não repudia nem desmerece sua dimensão horizontal – a justiça, a paz, a compaixão. Fé e obras, oração e caridade são exigências de um mesmo chamado, são propósitos de uma Igreja revelada num dado momento, mas que se dá a conhecer – que se torna íntima dos povos – no percurso da história. Só quem está muito pouco familiarizado com os Evangelhos para desconhecer isso. Mais do que esperar que a Igreja de Cristo se abra ao mundo, já que ela nunca se fechou, é preciso que o mundo se abra à Igreja de Cristo, para entende-la melhor e fazer filmes também melhores. Só que isso ninguém quer.

Por fim, quando tomo conhecimento de controvérsias e polêmicas em torno do Papa, deste ou de outros, no cinema, na literatura e no jornalismo, gosto de me lembrar da figura de Pedro, o primeiro de todos.

Pedro foi corajoso depois de ser covarde. Pedro foi firme depois de ser pusilânime. Pedro garantiu a divindade de Cristo depois de negá-la três vezes. Duvido que a escolha de homem tão instável – de um homem tão humano – tenha sido casual. Era mesmo sobre Pedro, que foi areia antes de ser pedra, que devia ter sido fundada a Igreja. Para que a Igreja não fosse tão próxima a ponto de ser desdenhada; para que não fosse tão distante a ponto de ser temida.

Hoje, tanto Bento quanto Francisco se reconhecem no mesmo Pedro. Dois papas num só.

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