Já nesta primeira linha sou obrigado a confessar: não assisti a nenhum episódio de Game of Thrones. Conheço da série o que é possível conhecer das mídias sociais: que havia fartura de peitos (e não só) à mostra; que havia dragões voadores; que havia anões sádicos; que havia gente morta que ressuscitava e gente ressuscitada que morria; tudo somado a uns bichos esquisitos e a uma politicagem mesquinha de fazer inveja aos filhos do Jair Bolsonaro.
Pois ontem foi o último capítulo desse drama que mobilizou toda a gente, durante oito anos. A cada estreia de temporada, a cada novo episódio, a cada morte gratuita o distinto público trepidava, e os abalos eram sentidos até por aqui. Como eu ia dizendo, não assisti à série. Nenhuma objeção especial, muito pelo contrário, apenas que ela não me pegou de início. Eu estava enlevado com outros dramas, outros peitos, outras mortes, talvez outros anões, e perdi o timing, como dizem.
No entanto, escrevo esta crônica em louvor a Game of Thrones. Sobretudo: em louvor à fascinação exercida pela ficção. Talvez não percebamos, mas o que vem acontecendo desde o advento das séries e filmes em streaming é coisa para ser comemorada e aplaudida. Um parêntese biográfico.
Logo nos meus primeiros contatos imediatos com a internet, calhou de a editora Globo publicar as obras completas do argentino Jorge Luis Borges. Meu escritor predileto entre os prediletos. Quatro volumes amarelinhos, muito bem traduzidos e editados, com tudo o que o bruxo cego publicou em vida. Os belíssimos poemas de matiz filosófico; os contos exemplares que oscilam entre o fantástico e o realista; os ensaios e as resenhas que são breves aulas sobre quase tudo o que se sabe desde Adão e Eva.
Lembro-me de quando o carteiro entregou a caixa. Fiquei sem saber como abrir o presente que eu mesmo me dera: coloquei sobre a cama, rodeei como cachorro em torno do osso e… fui tomar banho. Sim, fui tomar banho. O impulso que tive, vagamente fanático, foi o de tomar banho, vestir-me confortavelmente, fazer um café e trancar a porta do quarto para abrir com solenidade o pacote que me trazia as obras completas de Jorge Luis Borges. Só faltaram as velas. Não fui solene assim nem mesmo quando vi a Playboy (Maitê Proença) pela primeira vez. Afinal de contas, era o Borges que estava ali, todinho só pra mim.
Fecho o parêntese biográfico para dizer o seguinte: que bom, que ótimo, que auspicioso que obras de ficção novamente comovam, atraiam, fascinem, mesmerizem tanta gente ao mesmo tempo, e por tantos anos. Parece que reinventamos o folhetim. Grandes livros foram escritos, lidos e acompanhados assim: dia a dia, semana a semana, nos jornais. A sisudez dos clássicos esconde sua origem popular, prosaica, incidental.
De alguma forma, é o que temos visto com essas obras televisivas de grande qualidade e para tantos gostos diferentes. E não importa se o final foi decepcionante (a vida também é feita de finais decepcionantes), porque o que vale é a aventura da ficção, o desenvolvimento da trama, as frustrações, as lágrimas, as expectativas, os rancores, a ansiedade, os risos de tantos dias, de tantas horas, de tantos anos. Numa época em que a vida tem sido mais estranha que a ficção, é bom que o interesse pela ficção stricto sensu tenha renascido. Como Jon Snow.
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