Cena da novela "Rainha da Sucata", de Sílvio de Abreu, da Rede Globo. Reprodução YouTube.| Foto:

Fossem as condições mais favoráveis – cinco minutos antes de Eva meter os dentes na maçã –, discutiríamos ideias, somente ideias, não pessoas. É bonito, eu ficaria feliz, Oscar Wilde ficaria feliz, mas na prática não funciona. Na Terra de Vera Cruz funciona menos ainda. Aqui, as ideias são como parentes que aparecem nas festas de fim de ano ou políticos que surgem no período eleitoral. São penduricalhos, pulseirinhas feitas com o capricho dos estudantes da FFLCH, bijuteria vagabunda. Mal compramos uma ideia, ela se arrebenta.

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Por isso, precisamos discutir as pessoas que carregam, defendem ou encarnam as ideias. Temos de acompanhar a vida dos candidatos com o interesse vulgar de participantes de reality show, porque o que eles falam hoje é o que negaram ontem; o que afirmaram ontem, negarão amanhã; o que declaram no imposto de renda é o que roubaram no caixa-2. Tudo diante das câmeras.

Comentarista político, no Brasil, é um fofoqueiro de luxo. A culpa não é minha, é do Brasil, essa COHAB do pensamento ocidental.

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Não é necessário perder tanto tempo estudando programas de governo. Primeiro, porque mentem ou prometem coisas impossíveis. Segundo, porque o que está escrito nem sempre (quase nunca) corresponde ao que dizem, pensam ou fazem durante da vida.

Esse é um dos motivos da minha desconfiança (acordei otimista) sobre o que hoje diz, promete, garante Jair Bolsonaro, o Messias. Sua trajetória não é das mais edificantes. Sua vida política, sem retoques, deixa muito a desejar. Sobretudo: deixa muito por ser explicado. “O mito é o nada que é tudo”

Não me detenho na insubordinação, quando no Exército. Quem nunca se meteu em confusões? Está perdoado. A bomba no Rio Centro é uma história mal contada por todos os envolvidos. Passemos ao largo desse insignificante evento, porque foram “só algumas espoletas”, sem vítimas, como garantiu o disciplinado militar à época.

Prefiro me ater ao que dele sabemos sem dúvida nenhuma, sem edição de texto, imagem ou som. Não é preciso fake news para desgostar de Bolsonaro, porque as real news são desanimadoras o suficiente. O pensamento vivo de Jair, que conhecemos dos quilômetros de entrevistas e declarações, bastaria para fazer com que o mais fiel dos neófitos tivesse sua fé abalada.

Ele já declarou voto em Lula e apoiou o “nosso PT”. Distribuiu elogios a José Genoíno e Aldo Rebelo. Confessou admiração por Hugo Chávez e Alberto Fujimori. Certa feita, prometeu golpe no “primeiro dia na presidência”, se eleito. Ainda hoje, não reconhece a ditadura militar como ditadura, e trata Coronel Brilhante Ustra como herói nacional. Escolhe um vice-presidente militar, que tergiversa sobre “autogolpe”, tampouco reconhece a ditadura militar como ditadura e, por sua vez, também trata Coronel Brilhante Ustra como herói nacional. Os conselheiros que orbitam sua candidatura, como os generais Augusto Heleno e Villas Boas, flertam com as mesmas concepções. O Brasil não tem muita paciência para a democracia.

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Bolsonaro também disse que só se resolveria qualquer coisa no Brasil fuzilando FHC, fechando o Congresso, “matando uns trinta mil” e, se fossem uns inocentes no meio, paciência. “Guerra é guerra”. Votou contra o Plano Real, que estabilizou uma economia venezuelana, e ainda hoje acredita em estatais estratégicas e protecionismo econômico. Sempre teve preocupações corporativas, e cada centavo ganho na vida é centavo do erário. Sua grande ideia para a educação é disciplina militar. Sua grande ideia para a segurança pública é não ter grande ideia nenhuma. Talvez enfileirar um a um os bandidos e atirar neles, ou prendê-los todos de uma vez, até acabarem os bandidos e a paz reinar no Brasil, como num folheto das Testemunhas de Jeová. Ele é o conservador que milita contra o aborto mas defende esterilização de gente pobre. Ele é o liberal de última hora que quase sempre votou contra pautas liberais.

Não vou me ocupar das diatribes consideradas racistas, homofóbicas, misóginas, preconceituosas. Esse tipo de coisa não me assusta, piadinha não mata ninguém. Jair Bolsonaro não deve ser condenado por bobagens que poderiam ser ditas por qualquer outro garoto de 7ª série do Ensino Fundamental. Ciro Gomes e Lula falam coisas parecidas. Apenas torço para que, se eleito, ele se lembre disso e aceite bem todas as críticas. Eu vou adorar criticá-lo. Vou adorar escrever bobagens sobre ele. Se ele pode, os outros também podem. Liberdade de expressão é a liberdade do que não se quer ver expresso. Piadinha não mata ninguém, tá ok?

O que fica mal explicado é o que de fato importa, e deveria ficar bem explicado num candidato à presidência: a consistência de suas ideias, a coerência entre as ideias de hoje e toda a sua vida de ontem; seu compromisso com a democracia e a legalidade; seu apreço pela liberdade de expressão, quando dos outros; suas convicções sobre a economia de mercado. Isso tem de ser esmiuçado, questionado, fiscalizado com paixão por quem não gosta dele e, principalmente, por quem gosta dele. Jair Bolsonaro é uma cartesiana tábula rasa.

Já me disseram que o voto nele é um voto cético, pragmático, circunstancial. “O melhor para o momento”. Ocorre que me parece o voto menos cético entre todos. É um voto – ou um cheque – em branco. Ele se apresenta com a pureza de um Fernando Collor, quando surgiu das terras de Alagoas. “Caçador de marajás”, “abertura econômica”, “aquilo roxo”. Todo um voluntarismo ético-econômico que deu no que deu – e o que deu não deixou saudades.

Quando me dizem que o Messias ficou quase trinta anos no Congresso sem fazer nada de muito relevante “por ser puro e incorruptível”, pondero: meu Deus, precisamos de ceticismo. No mínimo, de uma desconfiançazinha mineira. Um sapateiro que durante trinta anos não fizesse sapatos porque o couro é ruim, a cola cheira mal ou os colegas de profissão cobram mais barato, deveria mudar de ramo. Sapateiros fazem sapatos. Políticos fazem política. Se uns e outros não fazem o que deveriam fazer, façam outra coisa.

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Os eleitores queiram ou não, gostem ou não, deveriam admitir que ele terá de se haver com o Congresso e um clima nada amistoso nas ruas. Em parte, por culpa de sua campanha. Não existe alternativa. Aliás, existe: “autogolpe”, como sugeriu o General Mourão, caso as instituições estejam sob ameaça. Mas, se ele for eleito presidente, por que diabos as instituições estarão sob ameaça? Ele guardará as instituições bem guardadinhas, amém.

Eu, que não sou seu eleitor, quero saber o seguinte: quem vota no Capitão, vota por acreditar em seu compromisso democrático, ou vota por esperar que feche mesmo o Congresso e resolva tudo sem as inconveniências da democracia? Quem vota nele, espera que respeite a democracia e deixe as bravatas de lado, ou, ao contrário, acredita que a democracia no Brasil não deu muito certo e precisa de um recall autoritário? Nessas horas, sempre me lembro de Millôr Fernandes: “Em todos os momentos da história ficou provado que um país que precisa de um salvador não merece ser salvo”.

Para ser sincero, não sei bem o que ele pensa sobre o país. Quem vota nele também não sabe. Finge que sabe, mas não sabe. Paulo Guedes acredita que o Brasil é uma de suas palestras: tem de liberalizar a economia. General Mourão acredita que o Brasil é um exército sob seu comando: tem de botar ordem na casa. Os filhos acreditam que o Brasil é sua conta no Twitter: tem de bater-boca na internet. Aliás, os rapazes influenciarão o governo? Porque eles todos, não sei quantos são, me lembram os “filhinhas” de Dona Armênia, personagem de Sílvio de Abreu, na novela Rainha da Sucata. Parecem bastante empolgados com a ideia serem primeiros-filhos. Que não deixem o Brasil “na chon”.

Jair Bolsonaro tem chances reais de ser presidente. Desponta como favorito e conta com o apoio do voto antipetista, perfeitamente compreensível, que aos poucos vai se definindo. Se existe um motivo que não consigo contestar é esse: defenestrar o PT, de uma vez por todas. No entanto, espero que o preço não seja alto demais. E justamente por isso, porque há um preço a ser pago com a derrota do PT, seria bom que soubéssemos quem, exatamente, chegará à presidência: se aquele que fez parte do sistema que condena e sempre que pôde flertou com o autoritarismo; ou aquele que faz juras de amor eterno ao liberalismo econômico e, sem muito jeito, à democracia, com a mesma sinceridade improvisada de quando prometemos aos parentes distantes, nas festas de fim de ano: “Precisamos nos encontrar mais vezes!”