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Cena de "2001: Uma Odisseia no Espaço", de Stanley Kubrick.
Cena de "2001: Uma Odisseia no Espaço", de Stanley Kubrick.| Foto:

“Sou humano; nada do que é humano me é estranho”

– Terêncio

 

As imagens do acidente que vitimou o jornalista Ricardo Boechat e o piloto Ronaldo Quattrucci revelam um traço cada vez mais recorrente e bastante questionável do caráter contemporâneo, seduzido pela medusa digital.

Enquanto uma mulher – Leiliane da Silva, 28 – se destacava em meio aos outros, e se dispunha a ajudar o motorista do caminhão sobre o qual caíra o helicóptero, os transeuntes restantes se esmeravam na captação do momento e, muito provavelmente, na publicação em tempo real.

Para a audiência, importava mais o registro distanciado, curioso e obsceno do evento que o socorro à vítima, como se o homem urbano estivesse aos poucos se transformando num antropólogo do imediato, num etnógrafo da desgraça.

Não é a primeira vez que noto isso, infelizmente não será a última. Aliás, é atitude já habitual e incorporada: a indiferença bruta à dor do outro, o olhar mesmerizado que cuida de fotografar, gravar, registrar, comentar, criticar ironicamente o acontecimento.

Em eventos esportivos, artísticos e musicais a mania chega a ter sua estranha graça. Vai-se a um show de proporções megalomaníacas, paga-se caro pelo bilhete, sofre-se muito para chegar, permanecer e resistir nos lugares menos confortáveis, e, por fim, quando o espetáculo começa, quando o artista se apresenta com a grandiloquência de costume, o espectador reduz tudo a uma tela de quatro centímetros quadrados.

A experiência se esvazia ante a obsessão do registro da experiência. O fã, misteriosamente, consegue resolver na cabeça a seguinte equação: é melhor inventariar o momento para ulteriores consultas e verificações, a vivê-lo em toda a sua irrepetível inteireza.

Nunca entendi muito bem essa bizarra solução. Sempre preferi carregar na memória – não só na memória cerebral, mas na dos ossos, do olfato, do paladar, do tato – a experiência em si mesma, em lugar de tê-la codificada numa pasta qualquer em meu computador.

Mas isso são coisas de antigamente.

Hoje, cada vez mais, viver é registrar sem ter vivido. É distanciar-se da própria vida para olhá-la de longe, e não exatamente olhá-la com os próprios olhos, mas por meio dos dispositivos tecnológicos que, certamente, têm se divertido muito mais do que nós.

A dor, a agonia, o pedido de socorro, a beleza, o deslumbramento, o espanto, a catarse, a possibilidade do heroísmo ou mesmo do martírio? Não, muito obrigado, passar bem. Para coisas tais existem bombeiros, guardas, atores, santos, cantores e gente de meia-idade. Gravar, fotografar, filmar, publicar, encapsular é preciso; viver não é preciso.

Viver é coisa dos nossos avós. Nós não passamos de antropófagos de bits, exploradores de virtualidades, pesquisadores da nossa própria produção, observadores do não-acontecido, estoicos do sofrimento alheio, mortos-vivos cada vez mais mortos do que vivos.

Tudo que é humano nos é cada vez mais estranho.

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