O assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) sugere implicações outras além da profunda e justificada tristeza de amigos e familiares. Sua morte e a de seu motorista somam-se às tantas mortes a que o país, em geral, e o estado do Rio de Janeiro, em particular, têm se habituado.
Em tese, estatística; mas o caso, por força das circunstâncias, carrega algo de inevitavelmente simbólico. É preciso furar o espesso torpor moral e admitir que execuções como essa sempre têm, e terão, caráter político.
Não dessa tão baixa política que, para fins de comentário, ainda chamarei “direita” e “esquerda”, mas da política no sentido mais amplo e mais nobre (e cada vez mais distante), de arranjo pacífico, ainda que imperfeito, da convivência humana.
Houve quem culpasse as instituições, o Estado e as elites pela morte de Marielle. Eu matei Marielle. Outros ironizaram sua luta por direitos humanos, seu trabalho em comunidades, sua filiação ao PSOL, as más companhias com as quais talvez andasse, os artistas que admirava. Chico Buarque matou Marielle.
Dessa forma se desenha a inacreditável partidarização do assassinato. Pré-candidatos e legendas disputam os cadáveres da vereadora Marielle e do motorista Anderson Pedro Gomes como se fossem votos futuros, troféus sombrios de uma peleja ainda mais sombria.
O PT achou meio de relacionar tudo com a condenação de Lula. Bolsonaro silenciou como um anacoreta. Ventríloquos de esquerda e de direita se apressaram para recolher os resíduos ideológicos desse grande saco de lixo intelectual que teima em não rasgar de vez, mais parecidos entre si do que suas intenções explícitas dão a entender.
Existe um inquérito em andamento, e é precipitado investigar em voz alta antes de apontar culpados e inocentes. Condenar a força policial indiscriminadamente vale tanto quanto desprezar o trabalho social em favelas. Seja como for, esse e tantos outros crimes têm como cenário a promiscuidade entre o tráfico e o Estado; têm como mentores criminosos oficiais e criminosos oficiosos. Os milicianos são a contrafação dos narcotraficantes.
Não se trata de um estado dentro do Estado, de uma organização que atenta contra o Estado; o Estado tem sido parasitado por facções criminosas, asfixiado pela corrupção, loteado nas eleições, deformado por consórcios incestuosos: torna-se ele próprio um organismo doente, um mecanismo danificado, cúmplice de seu algoz.
Quando um traficante coloca um policial na folha de pagamento, não há esquerda e direita, não há mocinho e bandido: há dois criminosos. Um com uniforme, outro sem. Pode não ter sido desta vez, mas foi e continuará sendo em tantas outras vezes.
Se a elite carioca e os pensadores de carnaval insistem em romantizar o traficante como uma espécie de anti-herói, self made man à brasileira, entre os de ímpeto autoritário não falta quem justifique a brutalidade – ou mesmo a corrupção – da polícia como se fosse tão somente o efeito colateral de seu zelo pela lei e pela ordem.
Portanto, não faz sentido falar em combates ideais entre o bem e o mal, entre os criminosos e as instituições. Os papéis se confundem, protagonistas e coadjuvantes improvisam falas, suspeitos se escondem nas reentrâncias dos morros e nas vielas da burocracia.
O tráfico não é a resposta compreensível e desculpável às injustiças, reais ou imaginárias, como argumenta o traficante e dublê de sociólogo Nem da Rocinha. Contudo, não é tão simples contrapor ao tráfico o Estado e suas instituições, quando sabemos que o Estado e suas instituições tornaram-se parte fundamental do problema, e já faz tempo.
Nessa paisagem moral inóspita e quase sem esperança em que nos movimentamos, Marielle Franco é mais um número, mais um nome: como o motorista Anderson Gomes, a juíza Patrícia Acioli, o prefeito Celso Daniel, os muitos policiais mortos em serviço, os anônimos que não valem o rodapé do jornal. Como eu, como você.