Em 2019 faço exatos, indesculpáveis, inocultáveis 39 anos.
Estranho imaginar que já vivi mais do que viverei, a depender da expectativa média de vida divulgada pelo IBGE, essa instituição que cuida da metafísica cotidiana e é bastante confiável. Espero que seja menos confiável do que parece; que a margem de erro seja larga o suficiente.
No Brasil, se tudo der mais ou menos certo, o que é difícil; se eu comer mais verduras e legumes que embutidos e açúcares; se nenhum acidente – de carro, de avião, de elevador – acontecer; se nenhum incidente – de assalto, de sequestro, de política econômica – surpreender; se o câncer demorar a encontrar lugar no meu corpo; se outras doenças menos nobres, como a dengue e a febre amarela, forem mesmo erradicadas – viverei até os 76.
No Japão, país onde a morte acontece com a frequência dos eclipses solares, quase todos vivem mais do que 83 anos. Mulheres, então, nem se dão ao trabalho de morrer. Eu diria que 83 anos é o mínimo aceitável para um japonês que se preze aposentar o quimono. São pelo menos sete anos a mais do que o brasileiro, o que é bastante.
Com sete anos se aprende um novo idioma, ou dois, salvo o fato de que temos muita preguiça para aprender um novo idioma, ou dois.
Com sete anos se aprende a tocar um instrumento com alguma proficiência. Basta ter proficiência.
Com sete anos um presidente leva o país à bancarrota, ainda que a maioria seja capaz de fazê-lo em menos tempo. Para isso são bons.
Sete anos a mais, no mínimo, vivem os japoneses. Parece-me justo, não estou aqui a reclamar. Se fosse o contrário, se brasileiros vivessem mais que japoneses, estaríamos perto de redescobrir o fogo produzido a fricção. Que brasileiros vivam menos que outros povos há de fazer parte do sutil equilíbrio universal.
Vai saber. Deus é quem sabe.
No meu caso, exclusivíssimo caso, constato ter vivido, sem dar por isso, quase 39 anos. Terei 36, 37 anos pela frente. Que farei eu, com essa esmola temporal – eu, que já me cansei de ser moderno e só quero mesmo é ser eterno? Envelhecer surpreende porque no comecinho acontece muito devagar, para depois a soma dos anos pular à nossa frente, agarrar nossa jugular, entupir nossas artérias, multiplicar desordenadamente nossas células, matar nossos neurônios e nos assustar como num filme de Hitchcock.
Quando você se olha no espelho, o rapazinho que aprendia a ler não está mais ali. O garoto que chutava bolas não está mais ali. O jovem que tinha medo de encontrar o primeiro emprego não está mais ali. O homem que se acreditava capaz de tudo não está mais ali.
Quem está ali é só você, com seus quase 39 anos, com seu exército frustrado de melhores versões de si mesmo, com suas escolhas, suas causas, suas consequências – suas causas perdidas. Lamento? Apesar de tudo, não lamento.
Não há o que lamentar. C’est la vie. Hoje sou quem sou, quem posso ser, quem os encontros e desencontros me ensinaram a ser. Arrependo-me de algumas coisas, talvez de muitas, porque arrepender-se é humano, demasiado humano, e só psicopatas não se arrependem.
Poderia – queria – ter sido mais e melhor. No entanto, se eu fosse mais e melhor, se eu fosse japonês, não teria sido eu, desse jeito aqui, para o bem e para o mal. Não estaria escrevendo estas linhas, mas outras; não teria me casado com quem me casei; não teria adotado o cachorro que adotei; não cuidaria do meu pai como cuido; não teria tido a mãe que tive e as irmãs que tenho; não teria os amigos que tenho nem teria perdido os amigos que perdi; se eu tivesse sido mais e melhor, teria sido outro, não eu. Melhor não arriscar.
Que venham os próximos anos. Sejam eles 36, ou menos, ou mais. As escolhas que escolhi estão bem escolhidas. Se tivesse feito outras, reclamaria das outras, e diria que estas escolhas de hoje poderiam ter sido melhores do que aquelas outras que não fiz. Se eu fosse japonês talvez invejasse ter nascido no Brasil, na Índia, na Suécia, numa peça de Shakespeare.
Vai saber. Deus é quem sabe.