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Gustavo Nogy

Gustavo Nogy

Falsos dilemas

Eu não critiquei direito a balbúrdia do Woodstock (Foto: )

Muito mais – ou, pensando bem, muito menos – do que o debate entre direita e esquerda, o que temos no Brasil, desde 2014, é uma rinha de galo retórica entre esta direita e aquela esquerda. Entre Lula e Bolsonaro. Ou, para resumir e reduzir, entre o lulopetismo e o bolsonarismo. É a simplificação de uma dicotomia já simplória em si mesma, em que um lado se define por sua oposição ao outro.

Para a esquerda, Lula é a única coisa que resta; é luz na escuridão. Não há ideias, não há propostas, não há candidatos nem líderes melhores ou possíveis. Para a direita, tudo o que não é Bolsonaro só pode ser Lula; o que não admite fanatismo e adesão plena só pode ser covardia e moderação indesculpável. Em lugar da prudência de Aristóteles e da disposição conservadora de Oakeshott, sturm und drang.

As críticas ao presidente eleito são quase sempre respondidas com a pergunta: “Você queria o Fernando Haddad?” Suspiros. Mais suspiros. Pondero que fazer do PT a régua com a qual se mede a política, no fundo, é um jeito de manter o PT vivo como nunca. Não, eu não queria o Fernando Haddad, distinto público. Por isso não votei nele. Mas a eleição acabou, não acabou?

Acabou, o governo começou, não vou criticar a Marina Silva nem bater no Marcelo Freixo. Ao contrário de uns e outros, eu não me isento: dou a cara à tapa e fiscalizo quem hoje tem a bic. Faço o que sempre fiz quando os personagens eram outros. Vida fácil é perder tempo reclamando do Geraldo Alckmin que comenta saúde no Ronnie Von, ou do João Amoedo enquanto dá testemunho das verdades do Novo como se fossem as de Jeová. Ser poupado de críticas é o amargo prêmio de quem não foi eleito.

De repente, cobram de mim não apenas as críticas ao Lula e ao PT (estão nos arquivos; procurem), mas também aos terroristas do 11 de setembro, ao golpe do Getúlio Vargas, ao estilo literário de Pero Vaz de Caminha, às libertinagens do imperador Calígula, à ingratidão do Judas Iscariotes e aos modos nada democráticos de Tutancâmon, que não respeitava o estado de direito e as garantias da Constituição cidadã de mil trezentos e tantos antes de Cristo. Eu queria ter nascido há dez mil anos, mas não nasci. Critiquei quem pude.

Então a saída consiste em pesquisar e se lembrar de que o país tem história, o comentarista tem biografia, os políticos – Lula, Bolsonaro, Getúlio Vargas, Tutancâmon – têm carreira e já fizeram ou deixaram de fazer coisas, e confessaram ou omitiram seus pecados ao padre ou ao eleitor. Nem tudo começou agora, neste exato instante, só porque agora, neste exato instante, a audiência tomou conhecimento da existência do político criticado ou do comentarista que critica. Meu passado, sinto dizer, não me condena.

O advento da internet (que agradeço) criou uma espécie de “presente contínuo”. A volatilidade dos interesses é tão alta, o entra-e-sai nos sites, blogs, aplicativos, plataformas e redes sociais é tão desnorteante, a concentração é tão pequena, a audiência é tão rotativa, que o leitor tem a impressão de que o mundo começa agora, quando os olhos distraídos miram naquele texto em especial. No texto de hoje, no de ontem, no máximo no da semana passada.

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