Nos anos da minha infância as férias eram espaçosas o bastante para nelas caber memória, imaginação e sabe Deus mais o que o intrometido doutor Freud enfiaria ali se pudesse. Hoje, quando me lembro, quando tento me lembrar, não consigo distinguir uma coisa da outra. Só sei que era bom.
Duas vezes por ano eu chegava a uma cidadezinha do interior de Minas Gerais, ao Sul das Minas Gerais, onde o ar sempre foi gelado e a geada se depositava em pequenas crostas sobre o mato, que derretiam conforme o sol subia, à beira da estradinha que nos levava muito devagar até lá. Não chegava nunca. Minha mãe era viva como uma tempestade, e para ela eu perguntava “Que cidade é essa, mãe?”, e ela sabia em que ponto do trajeto estávamos, que cidade era aquela, que mundo era aquele.
Sabia ou inventava, pouco importa.
Hoje não sei em que ponto do trajeto estou, e minha mãe não está aqui para saber ou inventar.
Na cidadezinha eu encontrava meu primo que calhou de nascer três dias depois de mim, o que me dava ares assim de inalcançável maturidade. Fomos (somos) mais irmãos do que primos, e vimos o mundo envelhecer. Ele me esperava com o entusiasmo de sempre, com a extroversão que tinha de sobra enquanto eu não tinha nem para o gasto. De alguma maneira, entendiamo-nos bem.
Nem tudo era bom, entretanto. Não era bom acordar às sete da manhã e ir duas casas acima buscar o leite quente, espumando, no latão. Aquilo sai de uma vaca, eu vi como era feito, tive nojo, senti falta da impessoalidade industrial. Quero beber leite, mas não quero ver o leite sair da vaca. Quero comer frango, mas não quero ver a galinha ter o pescoço destroncado, como vi tantas vezes, conquanto eu – confesso minha culpa, minha máxima culpa – tivesse algum ódio às galinhas, e talvez um vago sentimento de vingança, porque voavam para cima de mim quando lhes jogava o milho de comer.
Buscado o leite, faltava o pão. Eu sempre reparei que o pão de lá era menorzinho, e então comprávamos mais pães, que se somavam aos pães de queijo, aos biscoitos de polvilho, ao queijo propriamente dito, ao virado de banana. Buscado o pão e o restante que dava e chegava para dois exércitos e meio, subia as escadas, entregava tudo à tia e tentava me distrair para esquecer que o leite que eu beberia era o mesmo que eu peguei ali donde fora tirado, daquela vaca que era mais viva do que eu. Eu que, como dizia minha mãe, nunca fui católico para comer.
Bebido o leite com café, comido o pão com manteiga, saíamos à rua sem eira nem beira, sem objetivos maiores ou projetos mais ambiciosos que viver enquanto o tempo passava por nós muito mais devagar do que passa agora, quase tão devagar quanto a estradinha que nos levava até lá.
Na cidadezinha do interior de Minas Gerais a morte era diferente. Morria-se e velava-se em casa, na sala, o caixão diante do aparelho de tevê, as carpideiras cheias de sinceridade. Mas alto lá: ninguém morria anonimamente, como um vadio qualquer. A morte era anunciada nos microfones da Igreja, com uma voz de radialista de jogo de futebol, que lia a “Nota de falecimento”, em que constava o nome do senhor ou da senhora tal, residente a rua tal, cuja família muito lamentava e precisava de consolos, por cuja alma se recomendavam orações.
Orava-se.
O anúncio da morte me desgostava quase tanto quanto buscar o leite quente, espumando, no latão. Porém eu ouvia respeitoso, sem dar um pio, com o intuito de não despertar a atenção da Indesejada das Gentes, imaginando que aquilo só acontecia, só aconteceria, aos outros, aos distantes, aos vizinhos da chácara, aos homens muito velhos da roça, à galinha de pescoço destroncado, quem sabe à vaca donde saía o leite. Nunca conosco.
No interior de Minas Gerais eu não tinha nome. Chamavam-me pela filiação. Aquele magrinho ali é filho da dona Laura, filho da Laurinha, sobrinho do Jair e da Cacilda? Sim, era. Sim, sou. Ainda que hoje o Jair não esteja mais aqui para ser meu tio, nem a dona Laura, a Laurinha, esteja aqui para saber ou inventar quais eram aquelas cidades que surgiam entre a minha vida e as minhas férias, entre a minha memória e a minha imaginação.
Por isso as férias se transformaram numa memória, numa imaginação, numa mistura de ambas as coisas que se confundem com o ar gelado, a geada sobre o mato, a estradinha, a cidadezinha, o latão de leite, a galinha, a nota de falecimento, o primo, os tios, a mãe – a mãe que era viva como uma tempestade.
Férias.
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(Volto no dia 12 de agosto)