"Saudades dos cigarros que nunca fumarei", de Gustavo Nogy. Editorar Record, 2017.| Foto:

 

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(…) A política nacional consiste no uso de palavras e jargões esvaziados de qualquer valor semântico. São frases e apelos que se dizem às vésperas das eleições ou às portas da cadeia, não necessariamente nessa ordem, e isso não é de hoje. Ser republicano vale tanto quanto ser monarquista ou imperador de Ferraz de Vasconcelos. Ser republicano vale tanto quanto ser Miss Brasil.

Pois desde que Dom Pedro II foi melancolicamente deposto, o que se viu não foi apenas, ou principalmente, a troca de uma forma de governo por outra. Sistemas, formas, improvisos e regimes vêm e vão, ao sabor das intempéries. Isso nunca foi propriamente novidade. Mas talvez alguma coisa importante tenha ficado pelo caminho, nessa pressa toda.

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Não que eu seja monarquista. Não sou monarquista pelo mesmo motivo que não sou polonês: não existem, como se diz, “condições de possibilidade”. Para ser polonês eu precisaria ter nascido na Polônia. Para ser monarquista eu precisaria ter nascido numa monarquia. Mas tenho, sim, minhas simpatias pela liturgia, e o que há de ridículo em reis e rainhas é menos ridículo do que esse cortejo de presidentes, prefeitos, deputados e vereadores.

Confessemos: o fim da monarquia não foi a instauração de uma república das altas virtudes e das inapeláveis liberdades civis, mas o início de uma desnorteante sucessão de revoluções e reacionarismos, da ascensão vertiginosa de oportunistas famintos de poder e, a depender das necessidades, de sangue, suor e lágrimas. A Constituição de 1988, muito naturalmente, culminou no irônico coroamento dessa história fraturada: teríamos então um diploma para registrar todas as virtudes que já não conhecíamos, nem de vista.

Mas, sobretudo: o fim da monarquia representa uma cisão histórico-cultural com o que somos originariamente. Desde então estamos à procura do que não sabemos ser. Se o brasileiro cotidiano um dia encontrasse na rua outro brasileiro — castiço, meticuloso, indesculpavelmente brasileiro —, não seria capaz de reconhecê-lo e passaria adiante.

 

Trecho de “A coisa pública” in Saudades dos cigarros que nunca fumarei. Editora Record, 2017.

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