Israel (Pixabay imagens)| Foto:
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por Igor Sabino

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Uma das características marcantes da política externa brasileira sob o governo Bolsonaro tem sido o “desmonte” do Itamaraty. A instituição, historicamente, sempre foi conhecida por seu caráter técnico e a capacidade de manter a diplomacia estável, independentemente de quem estivesse na Presidência. Atualmente, porém, a situação é completamente diferente. Hierarquias foram desrespeitadas – a começar pela nomeação de Ernesto Araújo para o cargo de chanceler –, divisões de trabalho abolidas e a defesa pelo interesse nacional trocada pela propaganda ideológica de teorias da conspiração com pouca ou nenhuma base empírica. O exemplo mais claro disso é a Fundação Alexandre Gusmão (FUNAG).

A FUNAG é como se fosse um think tank ligado ao Ministério das Relações Exteriores, que visa produzir e promover conhecimento sobre relações internacionais e política externa brasileira. Dentre as atividades mais comuns da organização estão a publicação de livros e a realização de eventos públicos, os quais costumavam ter como palestrantes embaixadores, diplomatas e importantes acadêmicos, brasileiros e estrangeiros. Não mais. Hoje, a FUNAG tem servido de palanque para youtubers ligados à ala ideológica do governo; terraplanistas e alunos de Olavo de Carvalho. Nesses eventos tem sido comum a leitura de obras relacionadas ao movimento tradicionalista internacional, que se apresenta como uma das vertentes do conservadorismo e que tem, dentre outras pautas, a defesa do nacionalismo.

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Uma desses livros que foi discutido recentemente em eventos promovidos pela FUNAG é A Virtude do Nacionalismo, do filósofo israelense Yoram Hazony. Como o título sugere, a obra é uma defesa moderna do nacionalismo, que, segundo Yoram, tem suas bases na Bíblia hebraica, o Antigo Testamento cristão. De acordo com Hazony, a melhor forma de organização política é aquela baseada no compartilhamento de costumes e crenças advindas de três instituições principais: família, tribo e nação. Logo, esse seria um nacionalismo baseado na noção judaica de povo, que, diferentemente do que defendem supremacistas brancos, não está atrelado a questões étnicas. Isso rivalizaria com a noção de Império que, ignorando diferenças religiosas e culturais, busca o estabelecimento de uma ordem internacional uniforme. Se no passado isso foi buscado por Roma, por exemplo, atualmente seria por meio do liberalismo e das organizações internacionais, como a ONU e a União Europeia.

Hazony argumenta que essa ideia bíblica de nacionalismo foi adotada pela Reforma Protestante, contrastando com a noção católica de um Império cristão com dimensões universais, regido pelo Direito Internacional. Isso teria ficado claro por meio da chamada Paz de Westfália, de 1648, que pôs fim à Guerra dos Trinta Anos na Europa e levou à fundação de um sistema internacional semelhante ao que conhecemos hoje. Essa divisão da política internacional em Estados soberanos e independentes é, para o israelense, o melhor arranjo social disponível e, durante muitos anos, foi bem defendido pelo Reino Unido e pelos EUA. A mudança, no entanto, ocorreu com o fim da Guerra Fria, quando se convencionou crer no chamado “fim da História”, ou seja, o estabelecimento de uma ordem mundial liberal, guiada pelos EUA e pela Europa, sob a qual todos os países deveriam ser submetidos, ante o risco de enfrentarem severas punições, incluindo invasões.

A eleição de Donald Trump e o Brexit, no entanto, seriam indícios da falha desse projeto político e de um novo retorno às bases protestantes de Westfália. Seria o momento, portanto, de países ao redor do mundo lutarem por dois valores principais: independência nacional e a mínima moral bíblica para o governo legítimo, adaptando o legado do conservadorismo anglo-saxão de acordo com seus contextos nacionais. Uma das razões para tal argumentação em favor do nacionalismo, que Hazony deixa transparecer claramente nas páginas de seu livro, é a preocupação com Israel. O Estado judeu tem sido cada vez mais alvo de campanhas difamatórias e de tentativas de deslegitimação, sobretudo em fóruns multilaterais, como a ONU e a União Europeia. O que o autor atribui aos valores liberais.

Desde que foi lançado, em 2018, A Virtude do Nacionalismo tem sido alvo de debates e críticas. As principais delas estão relacionadas à leitura histórica que Hazony faz de alguns fatos, como o nazismo, que ele considera um movimento essencialmente imperialista e não nacionalista. Soma-se a isso a sua própria leitura acerca das causas do isolamento internacional de Israel, que pode ser atribuído, dentre outras coisas, às complexidades intrínsecas do conflito no qual o país se vê envolvido desde 1948, quando declarou sua independência e se viu invadido por todos os exércitos árabes vizinhos.

Isso posto, confesso que, enquanto protestante e sionista, consigo compreender várias das críticas feitas por Hazony ao liberalismo e até simpatizo com algumas de suas propostas. No entanto, acho bastante complicado pô-las em prática, sobretudo no Brasil. Não acho que o nacionalismo seja de todo ruim e acredito organizações internacionais, como a ONU, precisam urgentemente de reformas. No entanto, não consigo deixar de apreciar o seu valor, principalmente ao lidar com alguns desafios transnacionais, como as migrações, exatamente uma das questões que Hazony aponta como sendo mais problemáticas na ordem internacional liberal. Ele advoga que existe um movimento que busca cada vez mais a dissolução das fronteiras internacionais em nome do livre trânsito de pessoas. De fato, isso pode até ocorrer em alguns projetos de integração regional, como a União Europeia e o Mercosul. Porém, a crise de refugiados de 2015, tão utilizada pelos tradicionalistas para criticar a globalização, talvez seja um dos fenômenos recentes que mais demonstram o ponto cego dessa argumentação.

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De acordo com o ACNUR, a agência de refugiados da ONU, existem hoje no mundo quase 80 milhões de deslocados forçados, o equivalente a 1% de toda a população global. As causas desses deslocamentos são várias: desde guerras e mudanças climáticas até perseguições políticas e religiosas, e tentativas de genocídio. É um fenômeno complexo e que afeta várias regiões do planeta simultaneamente, sem previsão de ser resolvido. E, em grande parte dos casos, exatamente porque o regime internacional de refugiados, os tratados internacionais firmados no pós-Segunda Guerra Mundial falharam – se é que um dia funcionaram de fato. Muito antes de milhares de pessoas se lançarem ao mar rumo à Europa, em 2015, campos de refugiados já viviam abarrotados em países do Oriente Médio, da África e da Ásia.

Na maioria dos casos, essas pessoas não queriam e nem tinham condições de buscar uma vida melhor em outro lugar. Porém, diante da escassez de recursos em países como Líbano, Jordânia e Turquia, não tiveram outra escolha e, para isso, em muitos casos, recorreram a redes de tráfico humano para chegar na Europa. Especialistas ressaltam, por exemplo, que tudo isso poderia ter sido evitado se, em 2012, no auge da Guerra Civil Síria, os países europeus tivessem firmado acordos de cooperação econômica para ajudar os países acolhedores a desenvolver programas de geração de renda, para que os sírios permanecessem próximos de sua terra natal e, quando a guerra acabasse, estivessem capacitados não apenas para voltar à Síria, como de reconstruí-la. Ainda hoje, a maioria de refugiados está situada em países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento. Nesses casos, por pior que seja a ação da ONU e suas agências, é como se elas fossem um band-aid que impede que a hemorragia mate de vez o paciente.

Sim, eu acredito que há virtude no nacionalismo e no legado protestante para a política internacional. Se, por um lado, crer nisso é rejeitar o “imperialismo” liberal e as tentativas suaves de minimização das soberanias nacionais, por outro, não requer o abandono completo e radical de todas as formas de cooperação internacional e integração regional. O mesmo Antigo Testamento que relata histórias de conflitos e dominação imperial também dá exemplos de cooperação entre povos e atos de bondade para com estrangeiros.

Por fim, no caso brasileiro, não dá para ser conservador e nacionalista esquecendo que fóruns multilaterais – e a própria ONU – sempre foram espaços importantes em que conseguidos advogar pelos nossos interesses nacionais e obter ganhos políticos e econômicos. Logo, em vez de tentar abolir instituições que consideramos estar corrompidas, talvez um melhor caminho fosse tentar reformá-las. Aprenderíamos muito mais com a obra de Hazony se adaptássemos suas intuições ao nosso contexto. Há valor no nacionalismo, mas não no terraplanismo ideológico sob o qual o Itamaraty está submetido.

Igor Sabino é Bacharel e Mestre em Relações Internacionais pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), e alumnus do Philos Project Leadership Institute. Realizou trabalhos humanitários em ONGs de Direitos Humanos ligadas à American University of Cairo, no Egito, e pesquisas de campo na Polônia, Israel, Territórios Palestinos, Líbano e Jordânia relacionadas a migrações forçadas e perseguição religiosa.

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