(Cena de "Um assaltante bem trapalhão". Fonte: Wikimedia Commons.)| Foto:

As acusações contra Woody Allen só não são mais certas e recorrentes que seus próprios filmes: sabemos que todo ano haverá um filme novo do cineasta; sabemos que todo ano ele será acusado por Mia Farrow e sua filha, Dylan, pelo crime que não cometeu.

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Sim, repito: pelo crime que não cometeu. De acordo com investigações da justiça americana, que nem de longe sofre da malemolência da justiça brasileira, não há, nunca houve, provas que fossem conclusivas acerca do abuso de que Allen é acusado. Se não há provas não há crime.

João Pereira Coutinho observou muito bem: “(…) será que devemos abandonar os princípios básicos de um Estado de Direito e linchar em público alguém que foi acusado por outro de uma conduta reprovável? Cuidado com a resposta. Se ela é afirmativa, esse é um mundo em que eu não quero viver. Até porque eu conheço esse mundo: é o mundo típico dos regimes totalitários, que executava “dissidentes” sem provas, sem julgamento, sem nada”.

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Talvez o leitor mais desconfiado questione: “Desde quando podemos confiar cegamente no Estado de Direito?” Compartilho da desconfiança, mas pondero: desde quando podemos confiar cegamente na arbitrariedade dos acusadores? Tenho um pé-atrás com a justiça estatal; tenho dois pés-atrás com o justiçamento popular.

Não que eu tenha certeza absoluta, certeza metafísica, de sua inocência. Talvez Allen tenha cometido o crime perfeito. Os fatos aí estão – e as versões, os relatos, as contradições. O leitor pesquise e conclua como bem entender. No entanto, o que temos de certo é só o que nos resta: as acusações são infundadas; são apenas isso: acusações. E de acusações o infernal mundo de hoje está cheio.

Esse introito não tem a intenção de defender Woody Allen. Não se trata de acreditar ou não em sua versão, nem mesmo se trata de duvidar da estranha, editada, elaborada versão dos Farrow. Acredito na versão de Allen, duvido da versão de Farrow, mas isso não vem ao caso. Não é este o ponto.

O que intriga é que Woody Allen esteja sendo moralmente linchado por fatos não provados e, sobretudo, conhecidos de toda a gente. As acusações de abuso vêm de longe e da mesma fonte. Foram investigadas e arquivadas. Isso nunca impediu que atores e atrizes fizessem de Woody Allen uma espécie de selo de qualidade: atuar em seus filmes, fotografar ao seu lado, receber seu elogio significava ter no currículo a chancela de um dos maiores cineastas da história.

Subitamente, com a avalanche de denúncias – reais e imaginárias, verossímeis ou francamente ridículas – que desaba sobre a cidadela de Hollywood, atores e atrizes começaram a “se lembrar” de que Woody Allen talvez não fosse flor que se cheirasse. Cheiraram até cansar, mas os ventos mudaram de direção.

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Se atuar em um filme de Allen era sinônimo de bom gosto, agora é como beijar leproso em tempos bíblicos; como “indignar-se” parece ter virado categoria de pensamento, indignar-se contra Woody Allen faz as vezes do que antes fora atuar com Woody Allen. Desprezá-lo, hoje, é tão chique quanto bajulá-lo, ontem. Quem nunca se indignara com nada agora se indigna com entusiasmo furioso. Isso diz muito mais sobre os atores e atrizes do que sobre o diretor.

Porque dele sabemos o que sabemos: que se casou com a filha da ex-mulher, que faz um filme por ano, que é acusado sem provas do abuso de outra filha da ex-mulher. Mas dos outros, dos atores e atrizes de indignação oportunista, instantânea e retroativa, não sabemos nada, a não ser que fazem o papel de madalenas arrependidas, tardiamente arrependidas, que têm mais de judas iscariotes que de madalenas.