A posição de Donald Trump a propósito do reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel provocou furor entre analistas de política externa e palpiteiros irresponsáveis. Eu sou um palpiteiro irresponsável, vou logo avisando. Mas, como diria Zagalo, vocês vão ter de me engolir.
Papa Francisco, liso como ele só, e isso não é necessariamente ruim para um Papa, disse rezar a Deus “para que sua identidade seja preservada e fortalecida em benefício da Terra Santa, Oriente Médio e todo o mundo. E que a sabedoria e a prudência prevaleçam para evitar novos elementos de tensão em um contexto global já abalado por muitos conflitos cruéis“.
Estou quase de acordo com ambos e com muitos outros que têm se preocupado com as consequências – possíveis, segundo uns; inevitáveis, segundo outros – da decisão presidencial. No entanto, uma ponderação.
Se de um lado é razoável considerar que o gesto de Trump não logrará resolver coisa nenhuma, por outro lado sempre me causa estranheza a pressa com que a intelligentsia corre a reprovar todo e qualquer ato de, ou a favor de, Israel, enquanto fecha olhos e ouvidos para o que as amistosas autoridades palestinas e muçulmanas e seus entusiastas mais exaltados costumam dizer – e principalmente fazer – a respeito do conflito.
A história dos dois pesos, das duas medidas. Etc.
Nelson Ascher lembra que “os palestinos, que de fato não querem seu próprio país (e estavam muito felizes sob ocupação jordaniana e egípcia), reivindicam a cidade como capital de um Estado pelo qual nunca se empenharam honesta e racionalmente. Sua motivação é e sempre foi apenas negar aos judeus quaisquer direitos, pois, na cabeça deles, aquela cidade e aquelas terras não são nem sequer palestinas ou árabes: isso é conversa pra boi dormir. Jerusalém e Israel, segundo eles, são ‘waqf’, patrimônio sagrado e para sempre inalienável do islã, pois uma vez que os ‘fiéis’ se apossam de um o pedaço de terra, ele é e será deles por direito até o fim da eternidade. É disso e só disso que se trata: o nacionalismo palestino é uma manifestação disfarçada, para ocidentais crédulos verem, do supremacismo triunfalista muçulmano que, em toda a região, não admite que qualquer outra religião ou o secularismo afirmem seus direitos, pois se há algo que o islã repudia, é o multiculturalismo, a liberdade de credo e a tolerância”.
Não é preciso estar alinhado in totum com o neoconservadorismo americano e com a política de Estado israelense para notar que nem o antissemitismo mal disfarçado da ONU, nem o terrorismo que brota das terras palestinas abalam convicções, movem sobrancelhas, aquecem corações. O Hamas, para não variar, convocou nova intifada, e seus líderes disseram que essa é a única resposta possível. Sempre assim: para os palestinos, não é possível qualquer resposta que não seja a submissão ou, de preferência, a extinção de Israel. Isso resolveria o problema e deixaria todo mundo satisfeito.
Tudo culpa do Trump? Não necessariamente. Há tempos Papa Bento XVI foi responsabilizado porque, depois de certo discurso, muçulmanos resolveram matar gente mundo afora como forma muito civilizada de argumentar. Eles sempre estão dispostos a ter os ânimos acirrados, como adolescente com acne. Donald Trump é apenas o homem errado na hora errada (ou, a depender do ponto de vista e da conveniência ideológica, o homem certo na hora certa): aquele que atrairá todos os ódios e todos os desprezos, que justificará todas as ações e todas as reações. Como se, a partir de sua eleição, o restante do mundo insatisfeito, e respectivos malucos, tivesse salvo-conduto para ser o que sempre foi e fazer o que sempre fez – só que agora sem pudor nenhum. O topetudo, afinal, cumpriu uma promessa que todos os presidentes americanos, desde Bill Clinton, fizeram e não cumpriram. Se tal promessa era tão mal vista – por que prometiam? Se, digamos, Obama a tivesse cumprido – a grita teria sido a mesma?
Dizer que o ato “atrapalhará o processo de paz” tem de verdadeiro o que tem de naive: tudo, qualquer coisa, atrapalhará a esparrela que chamamos, já por preguiça teórica, de “processo de paz”. Em toda essa discussão há muito cheiro de fingimento de parte a parte; muito gosto pela impostura; contudo, o cheiro vira fedor quando vem da tantas vezes condescendente predisposição a ver nas piores reações palestinas justificativas que não se admitem nas melhores ações israelenses.
Em suma, de acordo com o que se depreende da narrativa mais ou menos consensual, da gente mais ou menos especializada, discursos e gestos são perversos como atos de terrorismo; atos de terrorismo são singelos como discursos e gestos. Concordo que nem tudo é tão simples como Donald Trump quer fazer parecer – e este pode ter sido um passo em falso (a conferir); mas se isso vale para Donald Trump, deveria valer para todos aqueles que, condenando com veemência seu gesto, curiosamente se esquecem de condenar outros gestos e outros discursos tão ou mais acirrados – e explosivos – que o dele.