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Não sei o que acontece com o mundo, mas no meu tempo – já tenho idade para o lamentável “no meu tempo” – as crianças, assim que descobriam que a vida não consistia em açúcar e correrias, ponderavam sobre o que seriam, quando crescessem.

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Lembro-me bem do que pretendi ser. Cientista, químico, inventor. Milionário. E super-herói. Em linhas gerais, o Tony Stark, aka Homem-de-Ferro, criação de Stan Lee. Não me dei bem com a Química e, pior, não fiquei milionário. Continuei a ler os quadrinhos e empobreci.

O futebol veio em seguida. Eu seria Maradona, Romário, Evair. Tentei ficar gordinho como Maradona, baixinho como Romário, alto como Evair. Os deuses do futebol não colaboraram. Joguei bola, tive algum talento – nada excepcional. Desisti porque não gostava de exercícios e não aguentava trombadas.

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O rock surgiu como derradeira opção. Até hoje gosto de estudar música, mas li a biografia do Mozart. Uma desgraça pra minha vida. Ele era gênio aos seis, sete anos de idade. Eu não era nada aos quinze. Mozart ou nada. Preferi tentar nada.

Dei certo como nada.

A moral dessa história é que os garotos e as garotas queriam ser alguma coisa. Cantores de rock, jogadores de futebol, atrizes de cinema, bombeiros, médicos, policiais, astronautas, arqueólogos, modelos, padres, bandidos, até executivos de banco. Havia criança chatinha no mundo que falava em “trabalhar no banco” (hoje são conhecidas como psicopatas, o que não vem ao caso).

Mas, enfim, queríamos ser qualquer coisa de interessante, útil, bonita, divertida, perigosa, generosa, heroica. Tudo mudou. Agora, o menino cresce, a menina envelhece, e o objetivo de muita gente é ser vítima de alguém. Levar bordoada. Chorar em público. Desabafar na Ellen DeGeneres.

Pai, quero apanhar simbolicamente quando crescer.

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Mãe, quero me sentir humilhado pela estrutura capitalista.

Professor, quero ser esculachado nas mídias sociais por uma qualquer indiscrição que porventura venha a cometer.

Está aí o caso do ator americano Jussie Smollett, que não conheço, da série Empire, que não assisto.

O rapaz foi atacado violentamente por dois homens, que também gritavam injúrias raciais e insultos sexuais. Ele é negro e gay, então vocês imaginam o quiproquó. Os democratas ficaram consternados. Os formadores de opinião formaram opiniões. O mundo atribuiu o ataque à onda de ódio vinda da extrema-direita. A onda de ódio disse que não era culpa dela, mas do Trump e do Bolsonaro.

Só que tinha uma polícia no meio do caminho, no meio do caminho tinha uma polícia: sem esforço, descobriram que foi tudo inventado. O rapaz queria aumento de salário e montou a farsa (Gazeta do Povo, me aguarde). Pensou que o barulho em torno de si faria com que a empresa pagasse mais e não matasse seu personagem. Resultado: foi preso e deve receber bem menos nos próximos anos.

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Gênio.

Esse é um didático exemplo, entre tantos, de um processo avançado de vitimização como prática social. O vitimismo aos poucos vem se transformando em moeda de troca, capital simbólico (Pierre Bourdieu) a ser apresentado com orgulho, como quem apresenta diploma acadêmico ou título nobiliárquico. Ninguém mais parece querer se destacar por suas virtudes, realizações, feitos, mas por sua alegada vulnerabilidade. Fazer algo vale menos que sofrer algo.

Sim, eu sei, nem tudo é tão simples. Sim, eu sei, há vítimas de verdade.

Pois é esse o problema: a manipulação do vitimismo como instrumento retórico faz mal às vítimas reais, e dá munição aos agressores reais. O fim dos grandes sistemas ideológicos deixou um vácuo que vem sendo preenchido por micro-pautas e micro-ideologias que atrapalham em vez de ajudar.

Já temos problemas o bastante – vítimas e agressores demais – para nos preocuparmos com os inimigos imaginários de Jussie Smollett. Jussie Smollett é falange, comício, happening, reunião de DCE, #MeToo, #EleNão. Smollett é Ellen Page, Asia Argento, Roger Waters.

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Jussie Smollett é o espírito do tempo.