Lula participou de evento do PT no Circo Voador, no Rio de Janeiro, dias após sair da prisão.| Foto: Ricardo Stuckert
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Lula foi o proletário que todo ideólogo pediu a Marx no finzinho dos anos 70. Com as greves do ABC, surgiu como liderança simbólica no hiato entre uma ditadura que acabava e uma democracia em gestação.

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Acontece que ele e a democracia tinham relação complicada. Tratavam-se com estranhamento, senhor, senhora, “entra, Lula”, “é cedo ainda, Democracia”. Sem intimidade, como primos distantes que se vissem nas festas de aniversário e nos sepultamentos.

Talvez por isso o PT tenha votado contra o texto da Constituição de 88, dita cidadã, quando havia consenso entre direita e esquerda que, embora prolixa e esquizofrênica, aquela constituição seria melhor do que a falta de qualquer constituição. Depois assinou porque tinha de assinar.

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Finda a ditadura, terminado o desastroso governo Sarney, Lula disputa pela primeira vez a presidência, numa das eleições mais esquisitas da história (superada somente em 2018).

Eleito Fernando Collor de Mello, com aquilo roxo, Lula ficou roxo de raiva e assumiu o papel cujo texto sabia de cor e salteado: o de oposição sistemática, inoportuna e oportunista a qualquer projeto, proposta, promessa que não fossem dele.

Collor durou pouco, estragou muito, saiu de cena, Itamar saiu do camarim, e o Brasil, nos planos de Lula, fazia as vezes de palanque, de palco, de picadeiro. Ele quebrava a quarta parede e falava com o povo.

O seu povo, mais precisamente: os proverbiais 30% de fiéis que o acompanharam nas futuras derrotas para o, ora vejam, intelectual uspiano FHC, convertido num centro-esquerdista civilizado e de propensões liberalizantes.

Pois o sociólogo reuniu alguns dos maiores economistas e capitaneou – ainda no governo de Itamar Franco, e depois em seu próprio governo – um nada desprezível plano monetário e de estabilização que, defeitos à parte, fez do Brasil um país viável novamente.

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Sim, FHC cometeu erros. Sim, a reeleição foi um deles. Reeleição denunciada (e depois desejada) pelo PT, que pediu impeachment (impeachment é golpe?), desprezou o Plano Real, criticou cada privatização ou tentativa de modernização da máquina pública.

O relativo sucesso de FHC no aumento do poder aquisitivo dos mais pobres (com o controle inflacionário e os programas sociais) ofendia o representante oficial dos mais pobres. O pobre era propriedade privada do PT. Ainda é.

Porque Lula nasceu para ser oposição. E oposição continuaria sendo, para sempre, se não tivesse encontrado um certo marqueteiro, se não tivesse assinado uma certa carta, se não tivesse acenado com uma das mãos a banqueiros e empreiteiros, e com a outra a sindicatos e militantes.

Repaginado, todo paletó-e-gravata, enfim conquistou a simpatia do eleitorado excedente e do empresariado leniente. O saudosismo do intelectual marxista virou carne no homem que àquela altura já não era nem vestígio de operário – ganhava presentes, abraçava ditadores, multiplicava o patrimônio. Mas ninguém precisa levar tudo tão a sério. O que vale é a intenção.

E a intenção foi se desvelando sem muita demora. Iniciado um bom primeiro governo, em que conduziu a política econômica de maneira razoável, logo em 2005 o país vê estourar o escândalo do Mensalão. Aquilo que ele acusou em FHC, ele foi lá e fez melhor.

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Joaquim Barbosa desmontou o esquema de compra de votos e prendeu metade da cúpula. O então presidente só foi salvo porque o povo gostava dele, os banqueiros gostavam dele, a oposição gostava dele, o Congresso gostava dele.

O inferno astral viria aos poucos, bem devagarinho, com os primeiros deslizes na condução da economia, e os primeiros (ou segundos, ou terceiros) comprometimentos com o Centrão daquela época, que não era chamado de Centrão. Os 300 picaretas com anel de doutor.

Se, naquele momento, terminado o segundo mandato, tivesse devolvido a bola para que o jogo continuasse a ser jogado sem ele, talvez hoje sua biografia fosse outra: mais parecida com biografia que com ficha corrida. Ele não é capaz dessa grandeza.

Lula indicou a gerentona Dilma Rousseff. Dizem que ela é honrada e não participou do esquema de corrupção. Pode ser, pode não ser. O que sabemos é que, se honra lhe sobrava, competência lhe faltava. Cada ano a mais de governo era um ano a menos de Brasil.

A Operação Lava Jato, em que pese o jacobinismo suicida, mostrou que o aparelhamento do Estado ia muito além do que se convencionava fazer na já pouco envergonhada política nacional. Por muito menos, durante décadas, o PT acusou todos os outros partidos.

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Petistas bradarão: “Sérgio Moro prendeu um inocente!” Do ponto de vista processual, a prisão de Lula foi controversa. Havia montanhas de indícios, mas também havia parcialidade. Outros processos virão, outras sentenças pesarão, veremos.

Abro parêntese. Presunção de inocência (judicial) não é presunção de ingenuidade (política). Me custa acreditar que ele não conhecia, nem se aproveitava, do esquema que movimentou bilhões de reais no seu governo, sob o seu governo, para o seu governo. Fecho parêntese.

O relógio do populismo andou, Dilma sofreu impeachment, Temer assumiu, Lula foi preso, Haddad foi boneco, Bolsonaro foi eleito, Lula foi solto.

Até que, nos últimos dias, uma ampla frente de oposição ganhou forma e conteúdo. Líderes políticos, intelectuais, artistas, eleitor comum. A ideia é juntar forças, aparar arestas, relevar divergências, antes que seja tarde demais para haver forças, arestas e divergências. Todos de acordo?

Nem todos de acordo. Lula gira em torno de seu próprio eixo e defende o lulocentrismo. Declarou, com a soberba peculiar, que não assina, endossa, aprova ou se entusiasma com movimentos suprapartidários. A única força suprapartidária no país é Lula e somente Lula.

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A esquerda democrática se enforca no cordão umbilical do PT. Mãos atadas, pés amputados, não sabe o que fazer, o que propor, nem consegue correr para longe do narcisismo autofágico de Lula. Tudo o mais constante, o movimento suprapartidário morrerá no parto.

O fim toca o início. Lula encontra a si mesmo, sua versão mais antiga, sob as muitas camadas de tintura cívica que já começam a descascar, na encruzilhada entre a autossabotagem e a mistificação. O Brasil? É o palanque, o palco, o picadeiro.