Descobri que só agora descobriram que Machado de Assis era negro. Ou que nunca foi meticulosamente branco, porém mulato, posto que preto retinto também não era. Se nos Estados Unidos uma gota de sangue negro define negritude e gerações de negritude, aqui é diferente; a paleta é vasta e nuançada.
Mas, como eu ia dizendo, há poucos dias tomei conhecimento da polêmica: grupos racialistas querem capturar Machado de Assis. Como negro fugido, o maior escritor brasileiro está sendo caçado por quem se julga dono e herdeiro de suas glórias e de sua liberdade artística.
O curioso é que nunca me apresentaram um Machado de Assis loiro, de olhos azuis, como um Cristo de calendário. Na escola pública em que estudei, nem de longe das melhores, a condição de moreno, mulato, mestiço ou mesmo negro foi observada com naturalidade, quando tratamos da biografia do bruxo do Cosme Velho.
A diferença consiste no seguinte: àquela época (cresci entre os anos 80 e 90), o Brasil ainda não tinha importado dos americanos os preconceitos e seu modo preconceituoso de lidar com os preconceitos. Eramos preconceituosos à nossa maneira. O fato de Machado não ser um querubim costumava ser devidamente notado e devidamente esquecido.
O que se agigantava era sua obra inimitável (com tantos imitadores ruins) e fundamental. O que nos assustava nele não era sua cor, mas as tantas cores de seus textos, feitos todos eles de nuances, claros-escuros, zonas cinzentas, meios-tons, tons-sobre-tons, sombreamentos e marcas-d’água, detalhes que muitas vezes escapavam à percepção bruta, ao gosto deseducado, ao astigmatismo estético dos adolescentes e também dos adultos.
Não sou negacionista do problema racial. Sei que existe, sei que persiste, sei que por muito tempo persistirá. As razões são muitas. O racismo é erro, falha, pecado, burrice, limitação, defeito dos homens, tanto quanto outros erros, falhas, pecados, burrices, limitações e defeitos. Onde houver homem haverá racismo. Retifico: onde houver homem haverá todos os males que os homens cometem. Discordo apenas de algumas das soluções e, sobretudo, da importação de soluções que, se noutros países podem fazer algum sentido, não fazem nenhum por aqui.
De que valerá reinaugurar o busto de Machado de Assis, agora em versão afrodescendente? Aplicar o emplastro racial num escritor que se quis universal? Escurecer suas fotos, alargar seu nariz, tornar mais crespos seus cabelos, e fazer dele um defunto-ideólogo de discussões que não lhe interessaram, quando vivo, ao menos não do modo e nos termos que hoje interessam a certos militantes e respectivos movimentos?
Machado de Assis, à parte o talento nato, foi laborioso. Melhorou com o tempo e o esforço. Leu, estudou, traduziu, escreveu e aperfeiçoou os sete instrumentos que tocava. Quis ascender socialmente por meio da literatura e de seu entorno. Riu-se das contradições e interdições sociais de sua época (Machado é bem mais engraçado do que parece à primeira vista; digo o mesmo de Kafka, aliás), mas, em especial, retratou a condição humana, o estar-aí do homem, com a pena da galhofa e a tinta da melancolia.
Acharia graça, tenho certeza, dessa sua nova condição de escritor... negro. Pior: de escritor de movimento negro. Ora mais negro que escritor.
Sim, Machado de Assis era mesmo mulato. De origem pobre. Dizem que gago. Também tinha crises de epilepsia. Quase um Ian Curtis da literatura brasileira. Todas essas notas consistiam no que havia de comum num carioca que escreveu literatura incomum. Literatura esta que, se em inglês tivesse sido escrita, daria a ele lugar entre os notórios.
Não acorrentemos Machado de Assis à etnia, à cor da pele, à cor da causa – seja esta, seja aquela, seja aquela outra. Ele é escritor humano (embora não ortodoxamente humanista) e sua arte sugere que não gostaria de ser tratado como negro, mulato, mestiço, moreno, regional, racial. Escurecer a pele de sua literatura não fará bem a ele nem a quem pretende escurecê-la; lê-lo, sim.
Deixemos Machado de Assis ser o que sempre foi: um alforriado do espírito.