Quando o rabo da ideologia balança o cachorro da realidade, uma discreta falha na Matrix serve para desnudar as bobagens de quem pensa viver no país das maravilhas. Maria do Rosário foi assaltada por eleitores, minto, por bandidos ainda não identificados: prestou queixa e lamentou o ocorrido – tudo que qualquer pessoa em posse de suas inteiras faculdades mentais faria. Só que Maria do Rosário nem sempre tem posse de suas inteiras faculdades mentais. Na maior parte do tempo está possuída pelo íncubo ideológico que confunde a defesa dos direitos humanos com a sistemática negação de que sessenta mil assassinatos por ano, dos quais a maior parte resta inconclusa, noves fora sequestros, assaltos, estupros e outras atividades recreativas semelhantes não são coisas que se ignorem ou se justifiquem. Preocupar-se com as condições infernais dos presídios brasileiros e com a ação estatal que muitas vezes mata para depois perguntar é justo, é mais do que justo. Lembro aos conservadores muito exaltados que a polícia é o braço armado do Estado, e se conservadores prezam mesmo pelo Estado mínimo deveriam prezar por uma polícia maximamente preparada, e não maximamente violenta; entretanto, progressistas e bons moços (no caso: jovens senhoras, como ela) não podem fingir que não sabem o que toda a gente sabe: o crime em países como o nosso é bom negócio e, condições econômicas e sociológicas à parte, o criminoso também tem de, como direi?, respeitar os direitos humanos, demasiado humanos, de suas vítimas. Até de deputados. Ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão?
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Assistir ao filme Song to Song, de Terrence Malick, é como estar com o estômago do espírito embrulhado no vai-e-vem dos relacionamentos líquidos, de que falava Zygmunt Bauman. O filme é quase a tradução exata desse ethos: ao expor como charme, como estilo de vida a ser desejado, a carência de sentido e de qualquer propósito minimamente apreensível, expõe também o pano de fundo existencialista, ou pós existencialista, que talvez causasse horror ao próprio Sartre: se o homem está condenado à liberdade, e se usa a liberdade para isso, para este estar-aí decadente e alienado, antes fosse menos livre. A adesão do francês ao marxismo talvez tenha sido a resposta (equivocada) a essa maresia espiritual – também conhecida como acídia – que acomete quem acredita que ser livre para não se comprometer é sinônimo de ser livre, ponto. Tudo na vida dos personagens de Song to Song é cambiante e gratuito; abusivo e perecível; cínico e melancólico. O produtor musical (Michael Fassbender) cuida da carreira do músico (Ryan Gosling), que tenta vencer na vida com a expressão facial de Ryan Gosling, o que é difícil, e se apaixona pela assistente de produção (Rooney Mara), metida amorosamente entre ambos. Uma quarta personagem – a garçonete (Natalie Portman) – entra na história para acentuar, ao paroxismo da crueldade, a solidão de todos os envolvidos. Tudo é tão ruim quanto parece, muito embora nem tudo precise terminar tão ruim quanto começa. Assim é o filme de Malick, assim é muitas vezes a vida, cada vez mais a nossa vida. Se a perdição é possível, a salvação não o é menos.
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