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Meia dúzia de perguntas para Adriano Soares da Costa

Arquivo pessoal (Foto: )

Adriano Soares da Costa é advogado, consultor jurídico, palestrante, conferencista, parecerista, presidente de honra da IBDPub – Instituição Brasileira de Direito Público, entre outros cargos e funções. Recebeu diversos prêmios e comendas. Agraciado com a instituição de “Medalha Adriano Soares da Costa” pela Academia Catarinense de Direito Eleitoral; agraciado com a criação do Observatório de Direito Eleitoral Adriano Soares da Costa, da Faculdade de Direito Mílton Campos (MG).​ É autor das obras Instituições de direito eleitoral, 10ª edição, Belo Horizonte: Fórum, 2013; Teoria da incidência da norma jurídica: Crítica ao realismo linguístico de Paulo de Barros Carvalho. 2ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2009; e Inabilitação para mandato eletivo, Belo Horizonte: Ciência Jurídica, 1998. Publicou dezenas de artigos de direito eleitoral, processual civil, administrativo e tributário, nas principais revistas jurídicas do País.

 

1 O candidato do PSL, Jair Bolsonaro, colocou em dúvida a confiabilidade do pleito eleitoral que se aproxima. Especulou sobre o risco de fraude nas urnas eletrônicas. O senhor conhece o sistema, confia na equipe responsável, acredita na idoneidade de nossa Justiça Eleitoral?

Nogy, não existe um sistema perfeito, imune a questionamentos. Penso que a Justiça Eleitoral foi extremamente corajosa, sob a gestão do Ministro Carlos Mário da Silva Velloso, um grande brasileiro, em implantar o sistema de votação eletrônica, acabando com o que havia de pior no processo eleitoral brasileiro: o sistema manual de votação (que gerava fraudes como urnas de lona previamente enxertadas de votos, por exemplo) e o sistema manual de apuração (em que ocorriam as maiores fraudes, com a adulteração dos resultados pela mudança de votos nos mapas de apuração, o chamado “mapismo”). As mudanças impactantes causadas pela introdução das urnas-e geraram um fenômeno perceptível no processo eleitoral brasileiro: antes, os candidatos que desejavam fraudar o resultado se concentravam menos no eleitor para a burla e mais nas fragilidades do sistema manual; depois, com as urnas-e, os candidatos passaram a investir na cooptação do eleitor, mediante a prática de condutas ilícitas como o abuso de poder econômico, o abuso de poder político e a compra de votos.

Esse fato revela que, na prática, há uma crença dos próprios candidatos, dos eleitores, dos advogados e de todos os que fazem a burocracia estatal na fiabilidade dos resultados das urnas-e. A corrupção eleitoral mudou de enfoque (do “mapismo” à compra de votos), justamente porque o sistema eletrônico passou a ser respeitado como um instrumento positivo de totalização bem mais segura dos resultados, representando mais proximamente a expressão da vontade popular. Há questionamentos? Há-os. Mas na democracia os questionamentos, as polêmicas, enfim, fazem parte da paisagem e devem ser sempre admitidos com naturalidade e levados a sério quando existam aspectos que precisem de esclarecimentos. Cabe à Justiça Eleitoral responder com clareza as indagações que forem feitas. Mas o fato concreto é que não existe, desde a implantação das urnas-e, nenhuma ação eleitoral relevante questionando as eleições em razão do funcionamento do sistema eletrônico. Afora isso, o TSE e toda a Justiça Eleitoral têm um corpo técnico qualificado, não havendo meios de se fazer um esquema de alto a baixo de fraudes com o apoio ou consórcio dos membros do Poder Judiciário, inclusive pela capilaridade, diversidade e complexidade do sistema eleitoral brasileiro.

 

2 Embora compreensível, insinuar que uma derrota nas urnas será resultado de fraude não lança uma sombra sobre todo o processo e, portanto, até mesmo sobre a vitória do próprio candidato Jair Bolsonaro?

Lança, sim. Mas precisamos contextualizar um pouco as preocupações legítimas externadas pelo candidato Jair Bolsonaro. Há uma lei, cuja aprovação contou com o seu esforço pessoal, que estabeleceu a obrigatoriedade da impressão dos votos. Absurdamente, sem base alguma no texto da Constituição, o Supremo Tribunal Federal, com parecer favorável da Procuradoria Geral da República, decidiu que o voto impresso seria inconstitucional. Os fundamentos dessa decisão impressionam pelo subjetivismo, a falta de apego ao texto constitucional, o decisionismo que passou a estar à base de muitos julgamentos do STF, cuja atuação como Corte Constitucional tem ultrapassado demasiadamente qualquer autocontrole, não raro substituindo os juízos políticos do Poder Legislativo pelos seus próprios. No fundo, a questão principal para o STF ser contrário ao voto impresso é menos jurídica e mais orçamentária: o seu elevado custo adicional. Todavia, convenhamos, orçamento é tipicamente matéria afeta ao Poder Legislativo e não é o Poder Judiciário o melhor exemplo de gestão orçamentária frugal.

Quando Bolsonaro, a esta altura do jogo, levanta aquelas dúvidas sobre a fiabilidade do sistema, todavia, termina cometendo o erro de questionar a lisura do processo eleitoral no qual ele concorre ao mais elevado mandato da República, pondo a legitimidade da sua própria vitória em dúvida. E uma dúvida sem respaldo na história e nos fatos. Mais ainda: colocou dúvidas sobre toda a Justiça Eleitoral, cuja atuação tem sido exemplar desde que as urnas-e foram implantadas. A complexidade das eleições brasileiras, o número de pessoas envolvidas na sua administração, a logística de armazenamento e distribuição das urnas-e, a sistemática de transmissão das informações de cada urna-e, com a coleta dos dados, a totalização e a divulgação dos resultados, tornam muito difícil a fraude do processo. Há gente demais envolvida em cada etapa para que exista uma adulteração programada e sem rastreabilidade do resultado final.

Então, sinceramente, acredito que não seria esse um tema a ser tratado pelo candidato Jair Bolsonaro, ainda mais sem apresentar elementos seguros que dessem densidade às suas preocupações.

 

3 Em caso de vitória de Jair Bolsonaro, sua fala não poderia justificar pedidos de impugnação do resultado, vindos da esquerda mais radical, que nunca esconde o que tomo a liberdade de chamar de ethos golpista?

A esquerda radical chama de “golpe” todo o processo democrático em que ela não saia vencedora. Desde a redemocratização do Brasil tem sido assim, com o “Fora Sarney”, “Fora Collor”, “Fora FHC”. Só agora voltou essa prática, depois do impeachment, com o “Primeiramente, Fora Temer”. Na verdade, a esquerda radical não aceita a democracia, não tolera nenhuma outra expressão política no poder. Pouco importa o que Bolsonaro diga ou deixe de dizer, a sua eleição será questionada, sobretudo em razão de pautas complexas, muitas no campo dos costumes, que serão tratadas em seu eventual governo, como a descriminalização, ou não, do aborto. Existe uma disputa ideológica no Ocidente, em que temas morais e culturais estão no centro do debate, gerando uma radicalização da postura da esquerda radical em rejeitar qualquer pensamento que não endosse o politicamente correto e a sua visão de mundo.

Acaso vença Bolsonaro, a sua eleição será sempre contestada pela esquerda radical. Não por causa de Bolsonaro, mas por causa da luta pelo poder que ela trava sempre como uma disputa entre inimigos, não entre adversários políticos.

 

4 Luiz Inácio Lula da Silva, até há pouco tempo, era o virtual candidato do Partido dos Trabalhadores. Foi, entretanto, impedido por lei que ele mesmo aprovou. De maneira geral, o que o senhor pensa sobre a Lei da Ficha Limpa?

A Lei da Ficha Limpa é uma lei malfeita, com erros graves de concepção, como o estabelecimento de uma sanção única para todos os ilícitos (8 anos), independentemente da gravidade deles. Pior: ainda transforma o tempo de exercício dos recursos legítimos interpostos contra sanções em tempo de uma inelegibilidade não prevista expressamente (inelegibilidade processual). Essa lei, hoje criticada pelo PT, nasceu justamente de entidades ligadas ao partido, como a CUT, a direção da CNBB e o MST. Infelizmente, a OAB embarcou nesse projeto e emprestou o seu peso para a aprovação do projeto de lei de iniciativa popular (ou seja, de iniciativa de grupos organizados que coletam assinaturas de muita gente bem-intencionada e de muita gente desavisada). Agora, Lula sofre os efeitos da inelegibilidade decorrente de condenação criminal por órgão colegiado, mesmo sem trânsito em julgado, contra a qual sempre me insurgi doutrinariamente, porque se trata de efeito secundário da sentença penal condenatória, que deveria estar com os seus efeitos dependentes do trânsito julgado, como previsto na Constituição.

Todavia, o STF, cuja composição é formada por ampla maioria de ministros indicados por Lula e Dilma, resolveu reescrever o texto constitucional, apagando o que lá estava expressamente escrito como cláusula pétrea, como direitos fundamentais insuscetíveis de serem modificados inclusive por Emendas Constitucionais: a presunção de inocência ou não-culpabilidade foi mitigada como se não estivesse prevista e protegida na Constituição.

A Lei da Ficha Limpa é uma lei malfeita, mal escrita, desinteligente e problemática. Cria mais dificuldades para a nossa democracia do que soluções. E eis que justamente Lula passou a sofrer os seus efeitos. É de se observar, porém, que sem tratamento diferenciado de iguais a ele. Para o bem ou para o mal, a Lei da Ficha Limpa foi declarada constitucional pelo STF e a situação de Lula, como condenado criminalmente por órgão colegiado, o faz inelegível.

5 Considerada a Lei da Ficha Limpa tal como foi aprovada, a impugnação da candidatura de Lula lhe parece tecnicamente correta?

A impugnação da candidatura de Lula não foi tecnicamente correta. A forma como se deu na verdade o beneficiou como a nenhum outro impugnado. Deveria a sua candidatura ter sido impugnada conforme a Lei da Ficha Limpa, e neste sentido o Tribunal Superior Eleitoral andou bem, mas não se poderia permitir a propaganda eleitoral de uma chapa originariamente desfalcada em seu cabeça, sem candidato a Presidência da República.

O Brasil teve a esdrúxula experiência de ver uma propaganda eleitoral sem candidato em nome de quem legitimamente se pedir voto: o Vice não representava a chapa congenitamente não formada e não podia pedir votos para si ou para um inexistente candidato a Presidente. O que se fez, então, foi permitir a propaganda partidária em propaganda eleitoral e, disfarçadamente, com a manutenção de Lula aparecendo como se fosse realmente candidato. Então, Lula terminou se beneficiando e beneficiando o próprio PT, porque o correto seria, no horário da propaganda eleitoral de candidatura impugnada, enquanto não houvesse a substituição, ficar a tela com fundo azul, sem qualquer propaganda em seu lugar.

 

6 Quais são suas impressões jurídicas, mas também políticas, sobre as eleições no Brasil e sobre a possibilidade de reformas eleitorais? Quais mudanças melhorariam o processo, e de que forma poderiam ser implementadas?

Nogy, o Brasil tem um processo eleitoral maduro, porém cada vez mais tutelado pelo Poder Judiciário e pelo Ministério Público. Limitou-se de modo perigoso a liberdade de expressão e a liberdade de propaganda eleitoral como princípio (hoje, vige uma tendência de compreender a liberdade de expressão como um favor estatal e não como uma garantia constitucional ínsita à própria democracia). Tudo passou a ser proibido ou a depender de autorização. Tirou-se a campanha eleitoral das ruas, o espírito festivo, a visibilidade. As eleições enfeiaram, amornaram. Com isso, passaram a ser domesticadas perigosamente, encontrando um campo de resistência nas redes sociais.

Penso seja essa a razão pela qual tenhamos um candidato à Presidência da República que lidera as pesquisas e continua crescendo mesmo sem tempo de televisão e rádio na propaganda eleitoral. As redes sociais passaram a ser as ruas, as avenidas, os comitês eleitorais. O que se tem visto publicamente de movimentação política no asfalto e nos calçamentos nasce ou é consequência de chamamentos nas redes sociais, um ambiente de muito mais difícil controle dos poderes públicos. O Estado tenta tutelar esse ambiente, porém ainda não encontrou os meios sem que invada definitivamente a cidadela das liberdades públicas.

Não vejo, por outro lado, soluções mágicas para mudar o nosso processo eleitoral. O nosso sistema não é ruim; pode até piorar em reformas eleitorais feitas artificialmente. Ninguém pode honestamente afirmar que o voto distrital ou distrital misto melhoraria a nossa experiência democrática. Aliás, diga-se que erraram os que disseram que a Lei da Ficha Limpa melhoraria o nosso processo eleitoral e retiraria velhos caciques da política. Na verdade, a renovação do Congresso Nacional nessa eleição será baixíssima, porque as reformas que foram feitas diminuíram o tempo de exposição dos candidatos e de propaganda, limitaram a liberdade de expressão, beneficiaram os que já estavam com mandatos eletivos ou já são conhecidos, como artistas, jogadores e pessoas públicas.

Precisamos da cláusula de barreira, reduzindo o número de legendas. Mas ela estava prevista na Lei Eleitoral de 1997. Foi o STF que a declarou inconstitucional, buscando salvar antigos partidos até hoje nanicos (como o PCdoB) e os então recentemente criados (como o PSOL).

Penso que a primeira e mais urgente reforma política começa pela delimitação a mais clara possível do papel dos Poderes da República. Não cabe ao STF, por exemplo, querer fazer reformas políticas, refundar o país, ditar qual o modelo adequado de financiamento da política. Enquanto o Congresso Nacional não ocupar o seu lugar como centro efetivo dos debates e soluções das crises políticas, teremos o risco sempre presente de aventuras autoritárias de grupos ou membros de outros Poderes, que desejam fazer mudanças sem legitimidade democrática, impondo a sua visão de mundo de maneira ilegítima e arrogante.

Mas, quanto à qualidade do voto, das escolhas dos eleitores, essa é uma matéria que não se resolve com leis nem no dedaço. É ao eleitor, e somente a ele, a quem cabe o direito de escolher; inclusive o direito à escolha errada…

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