CASSIONEI NICHES PETRY é Mestre em Letras-Leitura e Cognição, professor de Literatura e Línguas Portuguesa e Espanhola no Ensino Médio. Autor dos livros de contos “Arranhões e outras feridas” (Multifoco) e “Cacos e outros pedaços” (Penalux), do romance “Os óculos de Paula”, (Livros Ilimitados) e do livro de crônicas e ensaios “Vamos falar sobre suicídio?” (Kindle/Amazon). Atualmente, é colunista do site Digestivo Cultural, Portal Entretextos e colabora com o Caderno de Sábado do jornal Correio do Povo, de Porto Alegre – RS. Escreve literária também neste blog, como vocês sabem.
1 Crítica literária é, ou pode ser, literatura?
Crítica literária pode ser literatura quando o escritor elabora a linguagem procurando um efeito estético. Se ele está preocupado tão somente em escrever algumas coisas sobre um livro, seguindo fórmulas acadêmicas ou jornalísticas, então não é literatura, e sim, no máximo, uma análise acadêmica ou jornalismo cultural. Além disso, o bom crítico incomoda, assim como todo bom escritor. Alceu Amoroso Lima afirmou que “crítica é uma forma de arte”. Northrop Frye disse o mesmo: “A matéria da crítica literária é uma arte, e a crítica evidentemente é também uma espécie de arte. Isto soa como se a crítica fosse uma forma parasitária da literatura, uma arte baseada noutra arte preexistente, uma cópia de segunda mão do poder criador.”
2 Quais críticos você lê e são suas referências?
Atualmente, leio mais críticos de língua espanhola, como o mexicano Christopher Domínguez Michael e o espanhol Ignacio Echevarría, que não se furtam a criticar o que acham realmente ruim (Echevarría foi demitido do jornal El País em 2004 por criticar um livro da editora cujos donos eram os mesmos do jornal) e recebem críticas de suas críticas, ou seja, o que escrevem repercute. No Brasil, vale a leitura do Rodrigo Gurgel, o mais corajoso crítico que temos, apesar de discordar de suas ressalvas quanto ao niilismo na literatura. Jerônimo Teixeira também é leitura indispensável, criador de algumas polêmicas. Alfredo Monte também, apesar de sua doença, está se esforçando para nos oferecer boas críticas. Até há pouco não deixava de ler José Castello, que no entanto se tornou um panfletário partidário. Durante um tempo ele me influenciou na maneira de abordar as obras.
Dos críticos brasileiros antigos, no momento leio Wilson Martins e Álvaro Lins.
Quanto a influências, antes de tudo queria ser crítico para receber livros de graça, de editoras e escritores, sem o compromisso de escrever sobre os livros e, muito menos, ter de elogiá-los. Lembro-me que o saudoso Paulo Bentancur dizia que sua biblioteca era enorme e que tinha de se desfazer de muitos exemplares que ganhava. Antonio Hohlfeldt, gaúcho como o Bentancur e eu, também declarou isso em uma entrevista. Isso foi a primeira coisa que me motivou. Hoje até recebo livros de uma grande editora e de alguns escritores, sem compromisso (apesar de depois ser bloqueado nas redes sociais por escrever algo que não agrada a quem me presenteou).
Na adolescência, acompanhava as críticas no Zero Hora, jornal de Porto Alegre, e na extinta revista Blau, duas publicações a que tinha acesso aqui no interior do Rio Grande do Sul. No ZH, eu lia o Jerônimo Monteiro (hoje na Veja) e o Sergius Gonzaga (que para minha honra escreveu a introdução de um de meus livros de contos), cujo livro Curso de Literatura traz muitos apontamentos críticos sobre os clássicos. No mesmo jornal escrevia o Marcelo Backes, cujas críticas me marcaram muito, principalmente as demolidoras, como as que fez sobre Letícia Wierzchowski e Altair Martins. Outro texto polêmico dele foi “Viva a crítica que dá pau!”, uma espécie de profissão de fé, publicada na revista Blau, que também publicou “A arte da crítica em 46 teses”, de Miguel Sanches Neto, outro crítico que me influenciou, e que escreveu durante anos para a Gazeta do Povo. Entre as teses, esta: “O bom crítico sofre de estrabismo. Ele nunca enxerga as coisas da mesma forma que os outros.”
Depois disso, vieram as revistas Bravo!, Cult e Entrelivros, além do jornal Rascunho, com alguns críticos que eu lia muito. Algumas dessas publicações se extinguiram, outras tomaram rumos equivocados.
Nesse meio tempo entro na universidade. Não cursei nenhuma cadeira de crítica no Curso de Letras, mas a ementa nos prometia, entre as possibilidades de trabalho na área, a profissão de crítico, o que me fez brilhar os olhos. Doce ilusão. De qualquer forma, as sugestões de leitura e a boa biblioteca me apresentaram a críticos e teóricos como Antônio Cândido, Massaud Moisés (cuja notícia da morte me pegou justamente quando elaborava estas respostas), George Steiner, Harold Bloom (estes dois através das leituras do caderno “Mais!”, da Folha de São Paulo disponíveis na secção de periódicos, onde também lia os cadernos “Ideias e Livros”, do JB, “Prosa e Verso”, de O Globo, “Cultura”, do Estadão, “ADN”, do La Nación e “Revista Ñ”, do El Clarín), Northrop Frye e tantos outros.
3 Não é incomum que críticos errem – e feio – na avaliação de livros e escritores que depois foram reconhecidos como grandes, e também o contrário. É mais fácil errar enaltecendo um autor que o tempo revelará medíocre, ou subestimando um gênio?
A Leyla Perrone-Moisés escreveu que “o tempo é também juiz dos críticos literários” e, citando o português Eduardo Lourenço, disse que são “as obras que julgam os críticos”. Enaltecer é sempre mais cômodo, afinal há interesses por trás. Sobre o gênio, acho difícil surgir algum hoje em dia. Grandes mestres se equivocaram sobre grandes obras, porém mais acertaram do que erraram.
4 Há diferença entre crítica literária e ensaio sobre literatura. Como você distingue isso?
A crítica hoje é um texto geralmente mais curto cuja função é julgar, enquanto o ensaio geralmente é mais longo e tem como função analisar. Acho interessante uma definição que faz Christopher Domínguez Michael, mencionando também a resenha e outras formas. Para ele, e faço aqui uma tradução livre de um discurso seu, “a resenha é uma expressão mínima em extensão de uma arte maior, a crítica. Esta se manifesta através do polimorfo ensaio, embora também seja realizada através do tratado histórico, a fenomenologia filosófica, a dissertação acadêmica, a poesia (Alexandre Pope), o aforismo (os casos são numerosos) e um largo et cetera.
5 O meio literário é receptivo à crítica, ou os humores, as vaidades e as políticas ainda contam muito? Isso mudou – melhorou, piorou – com a internet?
Hoje há, é claro, mais resenhistas e a maioria quer agradar as editoras, principalmente para receber livros, compartilhamento da editora e, quem sabe, uma publicação com ela. Uso a expressão resenhista não só pelo tipo de texto que se escreve, mas também porque quase ninguém quer ser chamado de crítico, pois o nosso meio literário tem horror a críticos, apesar de, como afirma Leyla Perrone-Moisés, os escritores reclamarem sempre da crítica, porém “desejam a atenção desses profissionais [ou amadores, acrescento] para seus livros, quer por mera vaidade, quer pelo desejo legítimos de serem lidos e divulgados”. Não à toa recebo cortesias de escritores que gostariam de ver um texto meu sobre seus livros. Alguns recebem muito bem uma apreciação negativa, enquanto outros acabam “desfazendo amizades” nas redes sociais e até bloqueando o crítico, ou somente o ignoram.
O que vem atrapalhando mesmo é a questão política. Há quem desdenha um crítico por este ter posições políticas diferentes do escritor (ou por não se posicionar), assim como há críticos que não gostam do que escreveu o escritor por sua ideologia.
6 Como é que um leitor “comum” se transforma num crítico? O que ele tem de saber, aprender, ler, considerar para fazer carreira como crítico literário?
Paul de Man escreveu que a “crítica é uma metáfora para o ato de ler“. Gostaria de saber o caminho para fazer carreira como crítico literário, pelo menos a profissional. Parece que há alguns no Brasil, mas são poucos. Recebi só uma vez remuneração por um texto crítico, na verdade direitos autorais para uma resenha que escrevi numa coluna de jornal que eu assinava. Serviu de exemplo do gênero textual “crítica ou resenha crítica” em um livro didático, com várias questões para os alunos responderem.
Se se compreende carreira aqui simplesmente como um caminho, para segui-lo é importante ler e ler muito. Não sou daqueles que acham que basta ler pouco, mas com atenção. Negativo. Tem que se ler bastante e de tudo, inclusive várias áreas do conhecimento, algumas dessas leituras aí sim com mais atenção, dependendo do objetivo de ler. Também é preciso assistir a bons filmes, assistir à TV, ouvir música, apreciar obras de arte, enfim, ter um leque grande de conhecimento para poder fazer relações, criar títulos para chamar a atenção, perceber a intertextualidade, etc. Não sei se estou no caminho certo, mas estou trilhando o meu próprio caminho, que pode ser interrompido logo ali adiante.