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Meia dúzia de perguntas para Claudio Andrés Téllez
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CLAUDIO A. TÉLLEZ-ZEPEDA nasceu em Bochum (Alemanha Ocidental). Estudou Matemática com ênfase em Matemática Aplicada na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Cursou o Bacharelado em Relações Internacionais no Centro Universitário da Cidade (UniverCidade). Fez o MBA em Gestão de Comércio Exterior e Negócios Internacionais na Fundação Getúlio Vargas (FGV/RJ) e, a seguir, Mestrado e Doutorado em Relações Internacionais na PUC-Rio. É chileno, filho de pais chilenos. Sua família veio para o Brasil em 1979. Já morou em São Paulo (SP), Londrina (PR), Rio de Janeiro (RJ), Cuernavaca (México) e Rio de Janeiro (RJ). Agora, mora em Teresópolis (RJ) com a esposa Erica e o filho Ryan.

 

1 Você é um chileno que nasceu na Alemanha e veio parar no Brasil – e aqui ficou. Poderia falar um pouco dessa trajetória biográfica um tanto sui generis? E para completar: chegou e aqui ficou – ficará?

Costumo dizer que meu nascimento na Alemanha foi uma espécie de acidente geográfico. Afinal de contas, não basta nascer na Alemanha para ser alemão. Como os próprios alemães costumam dizer: “Se um porco nasce no galinheiro, é galinha?” Brincadeiras à parte, nasci lá em 1976 porque meu pai fez seu doutorado em Dortmund. Entretanto, meus pais são chilenos e fui registrado como chileno. Quando a família voltou para o Chile, no final da década de 1970, a economia do país ainda estava arrasada (não saímos do Chile como refugiados políticos ou algo do gênero). Surgiu, então, uma possibilidade para o meu pai, como professor visitante na USP. Em 1979, viemos para cá. Depois de um ano em São Paulo, meu pai conseguiu um cargo mais estável em Londrina e lá ficamos até 1985. Depois disso, meu pai foi contratado pela PUC-Rio e nos mudamos para o Rio de Janeiro, onde moramos até 2012 (com um intervalo apenas em 1993, quando estivemos no México, em Cuernavaca). Em 2012, viemos para Teresópolis. Casei em 2013 e, desde então, moro com minha esposa em um bairro e meus pais moram em outro bairro desta bela cidade serrana.

Se ficarei por aqui? Não sei. Em 2015, minha esposa e eu ficamos dois meses no México e, a seguir, três meses no Chile. Acabamos voltando para o Brasil e, depois de alguns meses em São José dos Campos, voltamos para Teresópolis e conseguimos – veja só – alugar o mesmo apartamento que tínhamos antes de nossa aventura internacional. Continuaremos por aqui? É bem provável que sim.

 

2 Seus estudos vão da Matemática às Relações Internacionais, passam por Economia e Filosofia – de resto, ainda é músico. Como se deu essa carreira de polímata, e como você compreende a integração do conhecimento em tantas áreas distintas?

Desde criança, sempre tive interesse por muitas áreas. É claro que tive minha fase de querer ser astronauta, mas logo depois manifestei interesse pela Ciência. Quando morei em Londrina, minha mãe cursava Biologia e meu pai trabalhava como físico-químico. Minha literatura predileta eram os catálogos que minha mãe recebia pelo correio: Carolina Biological Supply Company. Eu passava horas admirando as lupas, os microscópios, os modelos… Às vezes, minha mãe me levava para a faculdade e eu podia ver insetos na lupa ou paramécios no microscópio. Ainda naquela época, às vezes meu pai me levava para o trabalho e eu ficava brincando com cartões perfurados enquanto ele realizava cálculos no computador. Quando eu tinha por volta de 7 ou 8 anos, os primeiros videogames começaram a aparecer por aqui e todas as crianças sonhavam com isso. Meu pai perguntou se eu queria um videogame ou um microcomputador, e eu optei pelo microcomputador. Ganhei um TK-90X e, em pouco tempo, comecei a programar em BASIC. Também ganhei um videogame, mas em vez do Atari que todas as crianças tinham, meus pais me deram um Intellivision, que tinha mais jogos educativos.

Temas científicos e computadores sempre me interessaram. Por volta dos 8 anos também comecei a me interessar por línguas antigas, mas não tive muito acesso a material até a adolescência. Naqueles tempos, as coisas eram bem mais difíceis!

Durante a época do colégio, li muita Filosofia e Literatura. Comecei a me voltar mais para as áreas Humanas e comecei a me interessar por História e Arqueologia (na verdade, Arqueologia ainda é uma grande paixão!). Os livros de C. W. Ceram me marcaram e influenciaram muito. Além do mais conhecido Deuses, Túmulos e Sábios, devorei O Segredo dos Hititas, do mesmo autor. Como eu também gostava de escrever, todos pensavam que eu iria para Letras. Causei surpresa quando optei por Física.

Mas por que Física? Em parte, porque sempre fui fascinado pela Ciência. Eu era fã da série Cosmos, de Carl Sagan, décadas antes de virar modinha. Uma Breve História do Tempo, de Stephen Hawking, foi outro livro que marcou minha vida. Então, entrei em Física esperando estudar Cosmologia. Cometi um grande erro, pois romantizei muito a área. Cosmologia é algo que você estuda láááá na frente, então, em pouco tempo, o famigerado ciclo básico matou minha motivação. Ao mesmo tempo, tive que fazer uma matéria que todos odiavam, “O Homem e o Fenômeno Religioso”, obrigatória para todos os cursos na PUC-Rio. Adorei essa matéria! Conheci Rudolf Otto, Mircea Eliade e outros autores instigantes. Acabou que fiquei matriculado em Física por três anos, mas durante esse tempo estudei mais História das Religiões, Filosofia e Antropologia da Religião do que Física. Tive, também, meu primeiro contato formal com a língua latina e comecei a estudar grego e hebraico por conta própria.

No entanto, não desisti totalmente da Física. Eu ainda queria Cosmologia e consegui um livro sobre o assunto para começar a estudar por conta própria. Logo no primeiro capítulo, uma palavra chamou minha atenção: “Topologia”. Ok, então eu precisava estudar Topologia para ter uma boa base. Eu nem sabia do que se tratava, mas vi que o Departamento de Matemática estava oferecendo Introdução à Topologia para o semestre seguinte, então me matriculei. Pensei que, por ser uma “Introdução”, seria tranquilo. Depois vim a saber que essa matéria costumava ser cursada nos últimos semestres pelos estudantes de Matemática. Enfim, foi uma experiência ótima – tanto que decidi mudar de curso e migrei para Matemática.

Durante o curso de Matemática, não perdi o interesse por temas filosóficos e humanísticos. Conheci o Pe. Emanuel Bouzon, especialista em assiriologia e escrita cuneiforme. Descobri, por sinal, que ele era meu vizinho. Infelizmente, não tive muito contato com ele, mas comecei a estudar sobre a antiga Mesopotâmia e um pouco de sumério e língua acádia.

Tive alguns problemas de saúde na metade da graduação em Matemática, mas mesmo assim levei o curso até o final. Em meu último ano, resolvi abrir mais meus horizontes e me matriculei em um curso de Relações Internacionais, à noite. Fiz essa segunda graduação e, a seguir, em uma tentativa de dar um rumo mais “prático” à minha vida, fiz MBA em Gestão de Comércio Exterior e Negócios Internacionais na FGV. Descobri que “I’m not a business man after all”, mas sim “just a man” (como o Frank disse para o Harmonica no duelo final de Era Uma Vez no Oeste), e resolvi voltar para a área acadêmica. Fiz mestrado e doutorado em Relações Internacionais.

Agora, finalmente voltei para o campo científico e estou desenvolvendo pesquisas em modelagem computacional aplicada à espectroscopia vibracional, topologia algébrica computacional e criptografia.

Quanto à música, meu pai me acostumou com música clássica desde cedo. Sempre gostei. Aos 11 anos de idade, comecei a aprender violão. Mas só lá pelos 13 tive meu primeiro contato com o violão clássico. Praticamente ao mesmo tempo, comecei a aprender violão flamenco. Sempre quis aprender violino, mas só pude realizar esse sonho em 2010. Música e Matemática combinam muito e já percebi que minha capacidade de abstração melhora absurdamente com a prática instrumental. Pena que o tempo é escasso.

Sobre meu contato com a área de Economia… Bom, depois de cursar Relações Internacionais, cheguei a pensar em fazer o mestrado em Economia. Até estudei um pouco. Mas acabei optando por RI. Por que me interessei por Economia? É uma longa história. Devo dizer, isso sim, que política e atualidades nunca me atraíram muito. Essa é a área da minha mãe, quase uma Mafalda, que gosta de acompanhar as notícias internacionais e os comentários dos analistas. Ainda acho tudo isso uma chatice, embora tenha feito doutorado em RI. Gosto mesmo é de coisas antigas: sumeriologia, assiriologia, essas coisas. O período mais recente que ainda me desperta algum interesse é o séc. XVI – início da modernidade, escolástica tardia, etc. No doutorado, cheguei até o séc. XVII, mas não gosto de passar daí. As coisas ficam confusas demais, fumacentas demais, barulhentas demais a partir do séc. XVIII e da Revolução Industrial. Mas enfim… O ponto é que minha família sofreu horrores com a gestão de Salvador Allende no Chile. Mesmo assim, nunca se envolveram com política. Meus avós tinham uma pequena indústria de confecções e meus pais eram cientistas. Mas a experiência de vida, sem nenhum embasamento teórico, ensinou à minha família que regimes socialistas não dão, digamos, muito certo. No Departamento de Matemática, praticamente todos os meus colegas eram de esquerda e eu simplesmente não conseguia concordar com as coisas que defendiam. Mas eu não tinha muita base para discutir, então preferia até evitar. Hoje em dia, depois de ter acumulado alguma bagagem no campo da política, vejo como meus colegas defendiam suas posições de maneira ingênua e até infantil. Muitos matemáticos, embora lidem todos os dias com a razão em sua forma mais elevada, não são lá muito racionais quando se trata de política. É aí que a irracionalidade e a ingenuidade aparecem. Talvez porque seja fácil, para quem é matemático, criar mundos de fantasia nos quais até o socialismo poderia funcionar (como naquela piada da vaca esférica, conhece?).

No ano 2001, eu ainda estava tentando me recuperar de problemas de saúde e, por causa disso, pegava poucas matérias obrigatórias do Departamento. Assim, preenchia o tempo com matérias tais como latim, grego e filosofia da linguagem. Aí vieram os atentados de 11 de setembro… e só se falava nisso! De repente, todos se politizaram (na Matemática, algumas pessoas diziam que só nos Estados Unidos era possível encontrar um pentágono com quatro lados, por exemplo). Fiquei mais perdido do que cego em tiroteio e senti a necessidade de me “atualizar”, para poder participar das conversas. Suei bastante para passar do Código de Hamurabi à CNN. Em parte, foi por causa disso que, anos mais tarde, optei pela segunda graduação em RI.

Entre 1999 e 2000, tive algum contato com o pensamento liberal. Se não me falha a memória, nessa época assisti a uma série de palestras do Alex Catharino, no Instituto Liberal do Rio de Janeiro. Mas, além dessa introdução, e fora uma leitura ou outra, não me entusiasmei de verdade com essas coisas até 2001, depois dos atentados. Foi então que comecei a pesquisar mais, a me aprofundar mais… e, como grande parte do pensamento liberal no Brasil gira em torno de temas econômicos, comecei a me interessar por esses assuntos. Li alguns autores da Escola Austríaca, percebi que essas coisas “faziam sentido” (eu era muito ingênuo na época, nossa!). Foi isso o que quase me levou para um mestrado em Economia em vez de RI. Foi um erro estratégico ter optado por RI? Sinceramente, não sei, entre essas duas áreas, qual teria me decepcionado menos. Mas podemos voltar a esse tema em outra ocasião, se você desejar.

Para mim, o conhecimento é uma coisa só. Gosto de integrar as coisas, de buscar relações entre campos muito diferentes, de construir “pontes”. Tenho facilidade tanto nas ciências exatas quanto nas áreas humanas (sou cuidadoso com o emprego das palavras e, nas humanidades, reservo o termo “ciência” somente para a Arqueologia). Mas considero que qualquer pessoa, com esforço e dedicação, consegue integrar campos diferentes. O importante é nunca perder a curiosidade, é sempre olhar para o mundo com os olhos de uma criança que está descobrindo as coisas. Nunca perdi essa curiosidade infantil.

 

3 Com o fim da polarização na Guerra Fria e frustradas as previsões de Francis Fukuyama, o mundo geopolítico se esfacelou numa miríade de “pequenas” tensões, tendo os EUA como centro gravitacional, como se a Guerra Fria agora tivesse se multipolarizado: concorda com esse diagnóstico, ou vê as coisas de forma bem diferente?

O campo das RI (cujos praticantes gostam de chamar de Disciplina, com “D” maiúsculo) possui diversas correntes teóricas e há muitas lentes interpretativas para lidar com os fenômenos que ocorrem no internacional. Durante meus anos de formação, durante bastante tempo me identifiquei com o Realismo (uma corrente que, na atualidade, considero bastante idealista e ingênua, por sinal!). Nesse contexto teórico, pólos de poder fazem bastante sentido. Posteriormente, cheguei a me inclinar para um tipo brando de construtivismo, que dá mais ênfase a aspectos sociológicos (por exemplo, gosto dos trabalhos de Lars-Erik Cederman, que usa sistemas complexos e modelos computacionais para estudar a emergência de atores no cenário político). Em meus últimos anos como acadêmico do campo, contudo, passei a rejeitar todas essas “grandes” correntes teóricas (Realismo(s), Liberalismo(s), Construtivismo(s), etc.) e  me identifiquei com uma linha que gosto de chamar de Teoria da Escolha Estratégica, de acordo com o entendimento de Robert Powell e David Lake. Trata-se, basicamente, de usar Rational Choice e Teoria dos Jogos para estudar a política internacional. É a partir dessa lente que gosto de analisar o mundo. É claro que podemos identificar dois grandes jogadores (Estados Unidos e União Soviética) durante a Guerra Fria, e hoje temos mais jogadores significativos e jogos bem mais complexos. Mas, no fundo, não creio que essa separação analítica entre “bipolar”, “unipolar” e “multipolar” nos leve muito longe. Considero que a política tem uma lógica própria e, apesar das mudanças contextuais e culturais, o que o agente político faz é tentar maximizar sua sobrevivência política. Só isso. Concordo totalmente com Bruce Bueno de Mesquita a esse respeito. Nada mudou, portanto, da Guerra Fria para cá. Na verdade, nada mudou desde os antigos sumérios até hoje. Vejo a política como a maximização racional de uma certa função-utilidade em situações de interdependência estratégica (ou seja, as escolhas de cada um influenciam os resultados de todos), nas quais a chave é a manipulação adequada das informações disponíveis. O que muda, claro, são nossas percepções mais imediatas. Durante a Guerra Fria, vivíamos sob o medo da aniquilação nuclear. Hoje, as ameaças parecem mais difusas (as tais “pequenas” tensões). A lógica estratégica não mudou. “Ah, mas e quanto aos regimes políticos e às ideologias?”, você poderia perguntar. Sinceramente, considero tudo isso irrelevante para entender dinâmicas internacionais. Ideias e ideologias podem parecer muito importantes (afinal de contas, pessoas matam e morrem por essas coisas), mas, na verdade, a política se faz nos bastidores. Quase sempre, discursos não correspondem a intenções. O que faz o mundo funcionar são os cálculos estratégicos, as negociações ocultas e as operações de inteligência – justamente o que não vemos nos noticiários. Praticamente tudo o que gera discussões acaloradas no Facebook não passa de teatro. Acho isso engraçado: as pessoas quase se matando nos xingamentos por causa de um teatro de aparências, enquanto a política de verdade acontece atrás das cortinas.

 

4 A propósito de sua vocação matemática: como se dá essa formação? A matemática é uma espécie de “dom” – como muitas vezes filmes e livros dão a entender – ou o trabalho e o estudo são responsáveis pelo sucesso de um matemático? Qualquer pessoa com QI “normal” pode aprender matemática (em nível universitário)?

Na verdade, qualquer criança curiosa pode aprender Matemática. O mais importante não é o QI, mas sim a curiosidade e a disposição para o estudo rigoroso. É claro que certos indivíduos podem ter condições cognitivas que facilitam, mas são exceções raríssimas. Se a Síndrome de Asperger fosse pré-requisito para ser matemático, quase não teríamos matemáticos no mundo. Assim, o mais importante é estudar muito e trabalhar duro. Também é importante ser persistente. De acordo com o matemático Raoul Bott: “Há duas maneiras para se dar bem na Matemática. A primeira é ser mais inteligente do que todos os demais. A segunda é ser o mais burro de todos – porém persistente.

Quando frequentava o Jardim de Infância Pequeno Polegar, em Londrina, uma tarde a professora resolveu manter as crianças ocupadas com uma tarefa de Matemática. O livro se chamava Brincando com a Matemática e a capa tinha o desenho de um circo com vários macaquinhos brincando com números. Passou uma página do livro como exercício para as crianças. Em poucos minutos, fui até ela: “Tia, já acabei.” Achou estranho, mas, como não queria ser incomodada, mandou que eu fizesse a página seguinte. Depois de mais alguns minutos, fui lá encher a paciência da coitada outra vez: “Tia, acabei!” Achou ainda mais estranho e, chateada, disse que eu deveria voltar para o meu lugar e continuar fazendo até onde pudesse. Obedeci. Quase no final da tarde, ela observou que eu estava irrequieto no meu lugar, e foi brigar comigo. “Não mandei você ficar quieto fazendo os exercícios?” Respondi imediatamente: “Mas tia, já acabei.” Ela não entendeu nada: “Como assim, você acabou?” Então, pegou o livro e viu que eu tinha feito TODOS os exercícios. Muitos anos mais tarde, contei essa história para uma terapeuta. Ela perguntou se sou superdotado. Respondi na mesma hora: “Em que sentido?

 

5 Com respeito à economia, a quais escolas você se filia, quais elementos acredita que um economista deve levar em consideração e, principalmente, questões como “livre mercado” são ainda disputadas, ou isso já deveria estar bem resolvido pelos economistas?

Não me filio a nenhuma escola do campo da Economia. O motivo é simples: é uma área muito ideologizada e prefiro manter distância de áreas ideologizadas. Quando a ideologia entra, a ciência sai. Mesmo a economia “positiva” do Milton Friedman está muito distante de como os praticantes encaram seu compromisso intelectual. No fim das contas, a disputa pueril e inútil entre “direita” e “esquerda” contamina as principais produções da área. Se eu trabalhasse com  Economia, hoje, possivelmente lidaria com alguma abordagem evolutiva/adaptativa e modelagem computacional de sistemas complexos. Minha motivação é sempre entender fenômenos e considero que os economistas deveriam se dedicar mais ao desenvolvimento de uma postura realmente científica e menos à panfletagem partidária.

Gosto da ideia de que “quanto mais liberdade econômica, melhor”. A questão é: onde colocar o limite? Respondo: justamente no ponto em que a defesa da liberdade ultrapassa a fronteira para o lado da ideologia. Há ideias muito boas nas correntes, por assim dizer, “ortodoxas” – embora eu considere que o cálculo racional e estratégico, que explica muito bem a política internacional, não funcione bem para lidar com fenômenos econômicos.

Também há ideias excelentes em vários autores da Escola Austríaca, embora seja uma corrente ainda imatura cientificamente (mas, ora, isso vale para quase toda a Economia!). Por onde começar, para quem se interessa por essa linha? Por Carl Menger, depois por Carl Menger e, finalmente, por Carl Menger. Kirzner e Lachmann são outros autores que merecem mais atenção.

Vejo que o problema não está nas correntes, mas sim nas pessoas, mais comprometidas com ideologias do que com a produção honesta de conhecimento. Minha concepção é ingênua, idealista e romântica? Pode até ser, mas o fato é que a falta de rigor científico e o excesso de militância ideológica explicam muito bem o atraso da Economia em comparação com as ciências de verdade. Pelamordedeus, tem gente que até hoje tenta validar as propostas teóricas de Marx! E, o que é ainda pior, tem gente que até hoje perde tempo discutindo com essas pessoas!

Temas como o “livre mercado” ainda são, obviamente, disputados. As pessoas têm uma dificuldade enorme para entender que modelos NÃO CORRESPONDEM PERFEITAMENTE à realidade (nem devem corresponder, na verdade). Um pouco mais de conhecimento sobre modelagem ajudaria a acabar com essa idiotice de que “o socialismo real nunca foi implementado”. É claro que foi! As experiências históricas da economia socialista são exatamente como o modelo se comporta na prática. Da mesma forma, pode-se idealizar um mercado absolutamente livre de qualquer tipo de interferência estatal, mas o vamos ver se dá na observação de como as coisas acontecem na realidade. E, na realidade, a complexidade é tanta que o melhor que podemos dizer é que não sabemos se o mercado “totalmente” livre funcionaria.

Por que sabemos que as economias de planejamento central não funcionam? Porque temos explicações muito boas a esse respeito, inclusive de autores como Ludwig von Mises, por exemplo, mas também – e principalmente! – porque todas as tentativas de implementar esse sistema fracassaram de maneira cruel.

Já que a economia socialista baseada na propriedade coletiva dos meios de produção não funciona, isso significa, então, que o sonho dos ancaps, no outro extremo, funcionaria? Sinceramente, acredito que não – ou, pelo menos, não em um mundo heterogêneo. Pessoas são mais complicadas do que indivíduos, e não, por mais importante que ela possa ser, a propriedade não é a instituição mais fundamental das sociedades humanas. Mas aprendi isso só com o tempo, depois de muita reflexão e também depois de arrebentar a cara no concreto muitas vezes. Acontece que há mais coisas na vida do que “O Econômico” e, por trás da defesa do livre-mercado-liberalíssimo-livre-de-verdade-mesmo, há pressupostos filosóficos e antropológicos nos bastidores.

Admiro, sim, o esforço de certas instituições para proporcionarem mais literatura econômica em português. Considero isso um trabalho louvável. Espero que as pessoas leiam, e não apenas comprem os livros para tirar fotos e colocar no Instagram.

 

6 Deus joga dados com o Universo?

Sim. Às vezes, em mais de um universo ao mesmo tempo.

 

Bis

7 Como se deu seu processo de conversão ao Cristianismo (depois do ateísmo)? A compatibilidade entre ciência e religião é mesmo um problema? Como isso se resolve na sua cabeça?

Eu sei que eram só seis perguntas, mas considero adequado acrescentar esta aqui, conforme conversamos, já que a resposta conecta vários dos temas que abordei nas respostas anteriores.

Talvez “retorno” seja melhor do que conversão – já que tenho a marca indelével do Batismo. Mas também foi uma conversão e ainda está sendo. Na verdade, tento me converter novamente todos os dias. Encaro isso com algo dinâmico, como parte da própria vida.

Fui muito católico quando criança, em grande parte por influência da minha avó – que nasceu em Andacollo, um pequeno povoado nas montanhas próximas a La Serena, no Chile, onde há toda uma herança cultural em torno de Nuestra Señora del Rosario de Andacollo. Já morando no Rio de Janeiro, parte da minha formação escolar se deu no Santo Inácio. Foi aí que comecei a me afastar da Igreja. Já naquela época, eu tinha um certo “faro” para identificar picaretagens como a Teologia da Libertação, por exemplo (mas, obviamente, ainda não tinha maturidade para lidar com isso de forma saudável). Na minha cabeça, se Catolicismo era isso, então eu não queria mais ser católico.

Na adolescência, mantive uma relação bastante morna com a religião. Era um tema de interesse intelectual e, talvez por causa disso, não queria vínculos emocionais. Sempre fui, no entanto, curioso a respeito das “grandes questões”: há um “mundo espiritual”? Há alguma coisa que possa ser chamada de vida depois da morte? Como “tudo” começou? Eram os deuses astronautas? E assim por diante…

Meu contato com artes marciais me aproximou muito do Budismo. Durante muitos anos, pratiquei Kung Fu, Aikido, Muay Thai, Taekwondo (no México), mais Kung Fu, mais Aikido, Krav Magá (que não é arte marcial, é defesa pessoal), etc. Ora, o Kung Fu nasce nos mosteiros budistas e o Aikido é considerado, por alguns praticantes, o “Zen em movimento”.

Mesmo que o Budismo seja uma religião “sem deus”, ainda assim é uma religião. Sabemos que há pessoas que “rezam para Buda”, assim como há católicos que acreditam que santos fazem milagres. Todas essas coisas não faziam nenhum sentido para mim. Entre os 16 e os 20 anos, eu me entendia como ateu (embora tenha tentado experimentar o Cristianismo novamente por volta dos 18 anos, mas o entusiasmo não durou muito).

Quando comecei a estudar seriamente o pensamento marxista, tive também a oportunidade de conhecer os autores da Escola de Salamanca. Isso me incentivou muito a voltar para a Igreja. Não pelo marxismo ser um ateísmo, como todos pensam, mas justamente por não ser. O materialismo marxista, mais do que uma a-religião (o que seria, propriamente, um a-teísmo), é uma anti-religião. A inversão da dialética hegeliana, mais do que uma operação filosófica, é uma operação teológica.

Foi nessa época, por volta de 2004-2005, que comecei a me sentir verdadeiramente católico. Além do pensamento dos escolásticos tardios, comecei a estudar a Doutrina Social da Igreja (DSI). No final de 2005 ou início de 2006, se não me engano, fui convidado pelo Alex Catharino e pela Márcia Xavier de Brito a fazer parte do CIEEP – Centro Interdisciplinar de Ética e Economia Personalista. Realizamos vários projetos acadêmicos em parceria com a Arquidiocese do Rio de Janeiro. Foi um período muito gratificante para mim, de muito estudo e crescimento intelectual. Tenho saudades dessa época! Ademais, esses estudos ajudaram a consolidar minha posição atual com respeito às ideologias – um tema sempre presente na minha vida. Concordo plenamente com Chesterton (e também com Voegelin): há de fato uma correspondência entre as ideologias atuais e as antigas heresias. É por isso que rejeito tanto o(s) coletivismo(s), que dissolvem o Humano em um coletivo abstrato, quanto o(s) individualismo(s), que transformam a Pessoa Humana em mero agente econômico.

Eu realmente acreditava que estava fazendo algo bom. O Alex e eu tínhamos até um programa na Rádio Catedral, no qual discutíamos documentos da Igreja – geralmente relacionados à DSI. Mas, em pouco tempo, comecei a enfrentar problemas familiares e financeiros bastante severos. Fui diagnosticado com doença de Crohn em 2006. Meu caso é bem leve e está sob controle, mas a primeira crise foi tensa. No mesmo ano, minha mãe foi diagnosticada com câncer na língua e a experiência foi, além de emocionalmente traumática, financeiramente desastrosa (em parte, essas foram as razões que me levaram a querer tentar um MBA para dar um rumo mais prático à minha vida).

Finalmente, em 2008, comecei o mestrado em Relações Internacionais e isso deu uma bela bagunçada na minha cabeça. Pensei que seria capaz de manter uma postura academicamente correta, dedicado à produção de conhecimento sem motivações ideológicas de nenhuma espécie. Só que tive algumas decepções que envolveram meu trabalho no CIEEP, enquanto produtor de conhecimento, e os interesses institucionais dessa organização dentro de um contexto mais amplo que envolvia outros “think tanks” no Brasil. Em resumo, entendi que as coisas estavam tomando um rumo muito “ideológico” e decidi me afastar. Eu ainda interpretava, na época, a política como algo que pode se basear em ideias e princípios, mas não em ideologias. Era muito ingênuo. Ao mesmo tempo, meu vínculo com o CIEEP poderia causar problemas no ambiente acadêmico no qual eu estava inserido (nisso, não fui nem um pouco ingênuo). Acabei me dedicando somente ao mestrado, enquanto minha situação familiar e financeira piorava cada vez mais. Tudo isso contribuiu para que eu voltasse a flertar com o ateísmo e, durante muitos anos, fiquei em uma situação bastante confusa.

Por que “confusa”? Em parte, a religião perdeu o encanto para mim. Parecia que, quanto mais eu trabalhava em obras de conteúdo cristão, mais as coisas pioravam na minha vida pessoal. As leituras do mestrado também despertaram meu instinto “de exatas”: eu queria, honestamente, entender melhor todas aquelas foucaultolices relativistas, mas não conseguia ver em tudo isso mais do que uma tremenda perda de tempo, o que me fazia querer, cada vez mais, voltar para o meu refúgio mental na Matemática. Tentei combinar as coisas e fui incentivado a isso pelo meu orientador, mas percebi que seria impossível construir uma ponte adequada ainda no mestrado. Reservei esse projeto para o doutorado, inspirado pelas obras de Hayward Alker (um teórico de RI que, a despeito de ter sido marxista, era, acima de tudo, um homem de exatas, com sólida formação matemática, e que sabia dialogar com as áreas humanas). Ainda considero que as contribuições de Hayward Alker figuram entre as poucas coisas que prestam na assim chamada “D”isciplina de RI.

Finalizei minha dissertação de mestrado sobre a guerra justa como instituição constitutiva do internacional moderno (meu argumento se baseou quase totalmente no pensamento de Francisco de Vitoria) e parti para o doutorado. Resolvi desenvolver um modelo baseado na Teoria Evolutiva dos Jogos para estudar instituições fundamentais. Apliquei essa ideia ao surgimento da propriedade como instituição política da modernidade. Assim, ao mesmo tempo em que elaborei uma discussão conceitual articulando Grotius, Pufendorf e Locke, descrevi como isso poderia ser “modelado” formalmente usando jogos evolutivos e simulações computacionais. Embora não tenha passado muito da descrição – já que um desenvolvimento completo não seria palatável para o público-alvo em questão, eu me sentia um verdadeiro pinto no lixo, misturando reflexões que envolviam os entia moralia de Pufendorf e a evolução criativa de Bergson com o formalismo matemático da dinâmica do replicador. Obviamente, não pude desenvolver os aspectos matemáticos com a profundidade desejada, mas deu para brincar um pouco. Meu argumento central se baseava, parcialmente, em resultados recentes de Gregory Chaitin a respeito da matematização da evolução por seleção natural, mas a ideia central era que jogos evolutivos baseados nos memes de Richard Dawkins poderiam explicar a origem e a evolução de instituições sociais sem recorrer à ideia de “seleção de grupo”, que considero totalmente equivocada.

Foi aí que meu flerte com o ateísmo virou relacionamento amoroso de fato. Eu já estava decepcionado com a Igreja e intelectualmente frustrado. Por mais que eu gostasse das combinações que estava fazendo, percebi que minha capacidade para a Matemática não estava nem sequer enferrujada. Embora eu estivesse há vários anos fora da área, o campo das RI era, para mim, um verdadeiro desterro. Senti muita raiva e frustração. Embora ainda tentasse, às vezes, reavivar minhas convicções cristãs, o fato é que fiquei encantado com as ideias de Dawkins e de [Daniel] Dennett, e rapidamente comecei a me interessar mais por esse movimento de “novo ateísmo”. Christopher Hitchens tinha morrido há pouco tempo e comecei a ler suas contribuições. Retomei também as leituras de outros heróis da minha infância e adolescência: Carl Sagan, Richard Feynman e Stephen Hawking (cientistas que ainda admiro muito e que admirarei até o fim dos meus dias). Outra coisa também aconteceu: quanto mais eu abraçava essas novas ideias, quanto mais eu me “convencia”, mais parecia que as coisas melhoravam na minha vida. No mínimo, tinham parado de piorar. Eu estava trabalhando bem, começando a construir minha vida e o pior do sufoco financeiro parecia ter passado.

No período entre 2011 e o final de 2017, muitas coisas aconteceram. Em vários momentos, cheguei a questionar a superficialidade de vários argumentos ateístas de meus novos “heróis”. Ao mesmo tempo, por mais que eu encontrasse inconsistências em vários argumentos ateístas, quase todas as “refutações” de pessoas que defendiam a fé eram ainda mais risíveis.

Lembro-me de um episódio engraçado, que ocorreu no final de 2015. Tive uma discussão um pouco mais acalorada com um sujeito que postou, no Facebook, um vídeo com um trecho de um debate entre Richard Dawkins e o Cardeal Pell. No trecho em questão, o Cardeal achou graça porque Dawkins estava tentando “definir o nada”. Meu amigo, muito católico, considerou aquilo como prova máxima da ignorância filosófica de Richard Dawkins, que teria sido “humilhado” pelo Cardeal. Só que eu já havia assistido a esse debate inteiro, então perguntei: “Por acaso não foi nesse debate que o Cardeal Pell afirmou que é plausível que sejamos descendentes dos neanderthais?” Foi um choque. Que um cientista se enrole ao lidar com uma tecnicalidade filosófica quase esotérica é um problema, sem dúvida, mas ignorar fatos básicos a respeito da evolução humana é ainda mais patético. Como resultado, o amigo desfez a amizade e me “bloqueou”, acusando-me de relativismo. Ainda não sei o que há de relativismo em saber que Homo sapiens e o Homo neanderthalensis descendem de um mesmo ancestral comum. Há mais relativismo, na verdade, em uma postura tão cega pelo fanatismo que não consegue enxergar que dois pesos e duas medidas podem estar contaminando a capacidade de julgar: ou seja, por que um cientista tem a obrigação de dominar tecnicalidades filosóficas e teológicas para discutir com um teólogo, mas um teólogo não precisa conhecer ciência de ensino primário para discutir com um cientista? Relacionei o episódio dessa minha breve discussão com as reflexões de C. P. Snow a respeito das Duas Culturas. Aprendi, também, outra coisa: o abismo entre as Ciências e as Humanidades é tão profundo que não vale a pena perder tempo tentando construir pontes. Não porque não seja possível encontrar relações – que existem aos montes! –, mas porque os praticantes dessas duas culturas não compartilham de um mesmo compromisso fundamental com a produção e o avanço do conhecimento.

Do lado do ateísmo, as coisas não eram muito melhores. Acabei percebendo que, por mais que os principais autores tentassem apresentar seus argumentos como contrários à possibilidade de existência de Deus, na verdade o que rejeitavam eram as religiões. Quase sempre, diziam coisas do tipo: “Os avanços da ciência nos tiraram das trevas da ignorância e agora sabemos que a existência de Deus é bastante implausível. Ponto. Agora vejam as atrocidades a, b, c, d, …,  z cometidas em nome das religiões A, B, C, D, …, Z. Viram? As religiões são más!”.

Para complicar ainda mais minhas oscilações entre a crença e a descrença, durante um bom tempo tentei resgatar minha herança judaica. Minha trisavó materna era, muito provavelmente, judia. Além disso, para sua mãe (minha tataravó), a possibilidade dela ter sido judia era ainda muito maior. A linha materna não se interrompeu desde minha tataravó até minha mãe, o que significa que… sou judeu! O difícil, claro, é provar isso – e meu belo nariz sefardita não basta como prova. Conseguir documentos é quase impossível e não se pode ir a um Beit Din apenas com “histórias da família”. Mesmo assim, tentei reunir mais evidências. Só que um esforço sério nessa direção ultrapassa minhas possibilidades financeiras. Até porque meus antepassados que saíram da Espanha e foram para o Chile abraçaram rapidamente o Catolicismo e muitos registros foram destruídos.

Fiz mais uma tentativa de abandonar o ateísmo e me reaproximar de Deus, ou melhor, de D’us, e em pouquíssimo tempo minha vida virou de ponta cabeça. Tudo começou a dar errado novamente e cheguei ao fundo do poço em termos profissionais. Eu precisava reagir e colocar as coisas em ordem novamente, mas, por mais que tentasse encontrar algum apoio em Deus, o que recebia de volta era apenas silêncio. Resolvi que seria melhor desistir dessas coisas, deixar religiões de lado e me dedicar apenas à reconstrução da minha vida.

Nos últimos meses de 2017 e no início de 2018, fiquei praticamente isolado, apenas tentando sobreviver e elaborando planos para me reerguer profissionalmente. Embora o ateísmo fosse bastante confortável, nunca parei de questionar. Lá no fundo, algo me dizia que era importante refletir sobre essas coisas também. Por que eu sentia tanta raiva? Por que tanta frustração? Por que tanta decepção? Era com Deus? Não, até porque acreditava que Ele não existia. Era com a Igreja? Também não, porque mesmo em meus momentos de maior ateísmo e descrença, nunca deixei de defender a Igreja e os Papas contra as campanhas de desinformação e difamação que vemos por aí. Eu defendia essas coisas sim, não por convicção religiosa, mas por compromisso com a honestidade intelectual.

Conversava sobre esses temas com minha esposa, que às vezes dava a entender que não se sentia confortável com nosso ateísmo. Eu sentia que ela queria “voltar”, que precisava se reconectar com a Igreja. Mas eu dizia a ela que tenho uma dificuldade ENORME para lidar com o próprio conceito de crença. Não com a fé, mas com a crença. As conversas não passavam muito daí.

Mesmo assim, resolvi me aprofundar mais. Voltei a estudar. Percebi que nunca tive nada contra religiões, mas sim contra o que muitas pessoas fazem delas. Entendi que grande parte da minha raiva e decepção se relacionavam ao fato de que uma pessoa muito próxima, um amigo de longa data, alguém que sempre admirei como verdadeiro exemplo de retidão cristã, apunhalou-me pelas costas. Mas por que isso deveria reforçar meu ateísmo? Humanos são humanos, todos cometemos erros. O fato de podermos fazer o mal não significa entrar em contradição com a possibilidade de existência de Deus.

Lutei, e lutei bastante. Quais eram as perguntas mais fundamentais, mais decisivas? Será que necessariamente tudo tem que ter um ponto de partida? Sinceramente, não vejo nisso uma necessidade. O Universo pode muito bem sempre ter existido (agora sei que o próprio São Tomás de Aquino não discordaria disso). Mas, se o Universo sempre existiu, isso implica, necessariamente, na inexistência de Deus? E se vivermos apenas em um dentre incontáveis universos? A realidade precisa de algum tipo de validação metafísica? Qual é a relação entre Deus, o problema do castor ocupado e os teoremas de Gödel?

Nunca esgotei essas dúvidas. Apenas aprendi que não são incompatíveis com a crença, desde que se assuma uma posição honesta o suficiente a ponto de reconhecer que Ciência e Religião não são incompatíveis. Eu sabia disso, defendi isso inúmeras vezes no passado. Entendi, finalmente, que o que passei a ver em algum momento como “incompatibilidade fundamental” entre Ciência e Religião era, na verdade, pura pirraça da minha parte. É claro que um cientista pode abordar questões que costumam ser deixadas apenas para a Filosofia e Teologia. Mas, caso esse mesmo cientista consiga chegar a conclusões definitivas que excluam a possibilidade de Deus, nesse mesmo momento terá deixado de ser cientista e terá abraçado uma concepção dogmática do conhecimento, uma postura totalmente contrária ao próprio espírito científico. Ora, o próprio Richard Dawkins afirma que Deus “muito provavelmente” não existe, mas também diz que mudaria de opinião imediatamente se fosse confrontado com evidências boas e convincentes. Essa é uma posição cientificamente válida, e não se pode exigir que Dawkins estude profundamente temas de Filosofia e Teologia (a não ser que exijamos, também, que o Cardeal Pell se torne especialista em teoria da evolução por seleção natural e evolução humana).

Tentarei explicar melhor através de um exemplo: conheço ateus que argumentam que “o Big Bang explica o Universo, então Deus não precisa existir”. Via de regra, são ateus que nunca calcularam uma derivada na vida, que acham que o Big Bang foi realmente uma “grande explosão” (com barulho e tudo!), que nunca estudaram nada de Cosmologia, que nem sabem o que é a métrica de Friedmann-Lemaître-Robertson-Walker e que tudo o que conhecem sobre o assunto foi o que receberam a partir de documentários. Há documentários que são ótimos, é claro, mas é absurdo querer responder a questões extremamente difíceis e milenares sobre a vida, o Universo e tudo mais, quando tudo o que se tem na cachola é conteúdo de divulgação científica – por melhor que seja a qualidade desse material.

Entendi, então, que, assim como critico os negacionistas do aquecimento global por serem vítimas de manipulação ideológica (pobres inocentes que não fazem ideia do que é modelar sistemas altamente não-lineares, e que provavelmente nunca sequer resolveram uma integral na vida), a mesma crítica vale para os ateus militantes que afirmam que TUDO se explica graças ao Big Bang e pela teoria da evolução por seleção natural, mas que nunca estudaram geometria riemanniana e muito menos Relatividade Geral e que, possivelmente, nem sabem o que é um tensor ou a diferença entre evolução adaptativa e equilíbrios pontuados. Para essas pessoas, uma página de um livro de Teoria Quântica de Campos deve parecer mais esotérica do que os escritos alquímicos do garoto do Acre.

Alguém poderia dizer que certos campos da Ciência são mais compatíveis com a fé cristã do que outros, mas que seria um verdadeiro absurdo, por exemplo, acreditar em Deus e trabalhar com Evolução. Acabo de descobrir, no entanto, que o matemático e biólogo Martin A. Nowak é católico. Trata-se de um dos gigantes na área de dinâmica evolutiva e um dos principais pesquisadores no campo da Teoria Evolutiva dos Jogos (que usei muito no meu doutorado). Realiza contribuições importantes não só à Biologia teórica, mas também lida com temas que incluem desde dinâmica de infecções virais e genética do câncer até evolução de sistemas sociais. Além de ser católico, é um dos principais membros da Sociedade de Cientistas Católicos. Em suas palavras: “Ciência e religião são dois componentes essenciais da busca pela verdade. Negar qualquer uma delas conduz a uma abordagem estéril.” Eu pensava assim há alguns anos e agora penso da mesma maneira novamente. Estou em boa companhia. Agora também posso acrescentar, à minha lista de argumentos: “O sujeito nunca viu uma EDP na vida, nunca modelou um processo evolutivo, e já quer refutar o Cristianismo…

Nos últimos tempos, retomei leituras de autores como Joseph Ratzinger, por exemplo – que sempre me ajudou muito a esclarecer as ideias. Mas, o que é mais importante ainda, continuo tentando reconstruir minha vida, só que em novos termos. O primeiro passo seria combater a raiva, a frustração e a decepção. Pessoas que nunca tiveram a chance de me conhecer de verdade me prejudicaram? Paciência, já passou. Pessoas que me conheceram de verdade pisaram na bola comigo? Já consegui perdoar e, agora, prefiro lembrar com carinho nostálgico dos bons momentos e esquecer das coisas que deram errado no ano passado. Aos poucos, a raiva e a frustração foram passando, e as decepções não incomodam mais.

Reconheço que errei muito e agora quero apenas fazer meu trabalho, refazer minha vida, continuar pesquisando e produzindo, estudar muita Álgebra e Topologia, e, talvez um dia, até voltar a escrever. Não sou de esquerda, mas também não me considero mais de direita. Se ainda acredito que mais liberdade econômica e política é melhor do que menos liberdade, não faço disso uma bandeira de militância. Uma coisa é defender a liberdade e nunca perder o foco da pessoa humana, outra coisa é fazer do individualismo mais um “ismo” perigoso. As coisas começaram a degringolar, talvez, a partir de John Stuart Mill. Não sou especialista no período, mas identifico, nesse autor, um passo importante para a ideologização do liberalismo. Claro, muitos adolescentes de hoje leem dois ou três livros de Hoppe e de Rothbard e já saem por aí se achando os grandes arautos do evangelho libertário. Compreendo perfeitamente. Já fui jovem e também cometi erros. Espero que os esforços editoriais recentes, que têm proporcionado acesso a obras importantes de vários autores, ajudem esses jovens a amadurecer as ideias. Mas há coisas que só a vida ensina. Faz parte.

Ah sim. É importante dizer que, se voltei ao Catolicismo, não é porque agora tenho certezas. Na verdade, tenho ainda mais dúvidas. É aí que está a beleza da coisa.

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