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Arquivo pessoal
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Eduardo Wolf é Doutor em Filosofia pela USP, tendo sido pesquisador visitante na Universidade Ca’Foscari (Veneza, Itália). É editor da plataforma multimídia Estado da Arte no jornal O Estado de S. Paulo, colaborador da revista Veja e foi colunista do jornal Zero Hora (Rio Grande do Sul). Editou, entre outros, os volumes Pensar a Filosofia e Pensar o Contemporâneo, lançados pela Arquipélago Editorial, e traduziu os ensaios de T. S. Eliot, entre outras obras. Foi Secretário-Adjunto de Cultura de Porto Alegre (2017). É curador-assistente do projeto Fronteiras do Pensamento. Atualmente, está escrevendo o livro Guerras Culturais, que será lançado pela editora Record.

 

1 Das aulas de literatura no Rio Grande do Sul à filosofia em São Paulo: pode nos traçar o itinerário de sua trajetória intelectual?

Eu comecei a minha formação acadêmica no curso de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 1999. Não tinha dúvida alguma de que seria professor de Literatura Comparada para o resto da vida. Esta foi apenas a primeira das verdades definitivas da adolescência a ser derrubada pelos nada sutis golpes da vida real. Eu tinha uma grande expectativa com relação a uma formação humanística sólida, obviamente com foco em Literatura, mas na verdade, como qualquer pessoa melhor informada do que eu à época já sabia, a derrocada dos cursos de humanidades já estava mais do que consolidada. O discurso difuso contra os clássicos, a depreciação das escolas de análise mais formal, um vago pobrismo sociológico – no lugar até mesmo da boa sociologia da literatura – eram já dominantes. Eu comecei a dar muita aula em colégios e pré-vestibulares em Porto Alegre, o que acabou me distanciando ainda mais do curso.

A migração para a Filosofia se deu um pouco por acaso: em 2004, assisti a uma (rara) conferência dos professores do Departamento de Filosofia da UFRGS aberta ao grande público. Após ver a palestra do professor Balthazar Barbosa Filho, não por acaso apelidado de “O Farol” por muitos de seus contemporâneos, sobre a Metafísica de Aristóteles, tive o meu momento Saulo no caminho de Damasco. O nível de precisão, profundidade e a seriedade entusiasmada com que o professor Batlhazar apresentava um texto clássico como aquele fez com que eu prontamente passasse a frequentar suas aulas – especialmente os cursos de Metafísica e Ética. Seu estilo contagiava boa parte do perfil do Departamento de Filosofia naqueles anos – foco nos clássicos formadores, abordagem analítica, rigor e abrangência. A formação de excelência e humanística que eu busquei e não encontrei nas Letras, tive-a na Filosofia.

Foi também por influência das aulas de Balthazar Barbosa que minhas pesquisas se inclinaram para a Filosofia Antiga. A filosofia de Aristóteles foi, para mim, o fio condutor de muitos dos meus outros interesses filosóficos, seja pelo particularismo moral contemporâneo, seja por certas questões de ética, estética e filosofia da literatura. E foi para estudar com um dos grandes pesquisadores do aristotelismo contemporâneo, Marco Zingano, que vim para São Paulo em fins de 2009. Fiz meu mestrado, meu doutorado e agora preparo minhas pesquisas de pós-doc em São Paulo – cidade pela qual eu tenho uma predileção toda especial, mas isso requer uma outra resposta, quase uma outra filosofia.

 

2 Você é curador-assistente do Fronteiras do Pensamento, evento que traz para o Brasil alguns dos nomes mais relevantes da cultura mundial. Como é a experiência de participar desse projeto e o contato com essas figuras?

O Fronteiras do Pensamento, criação espetacular do meu chefe e amigo Fernando Schüler há mais de 12 anos, é um dos projetos culturais mais bem-sucedidos no panorama brasileiro, e isso sob vários aspectos. Nunca foi ideologicamente contaminado por uma “agenda” que não a da qualidade e a do pluralismo de ideias. Isso permitiu que o projeto se firmasse bem e conseguisse trazer um grande número de pensadores, artistas e intelectuais – mais de 10 prêmios Nobel, por exemplo. Para mim, em particular, que já fui apenas público, já fui acompanhante dos palestrantes, já fui apresentador – já fiz um pouco de tudo, enfim, neste projeto – é uma honra, hoje, participar da escolha dos temas e dos convidados que oferecem ao público um conteúdo de alta qualidade. É uma honra tremenda poder contribuir para trazer ao Brasil, apresentar e debater com nomes como John Gray, Francis Fukuyama, Robert Darnton e Niall Ferguson, entre outros. É como se você pudesse olhar para a sua biblioteca e interrogar os seus livros, convidando-os para uma conversa e um cafezinho. É um luxo, não?

 

3 Sei que, para breve, haverá livro seu sobre um tema controverso: “guerras culturais”. Pode antecipar a abordagem e os motivos que o levaram a mapear esse conjunto de problemas?

A primeira coisa que eu digo no livro e nas aulas que eu tenho dado sobre o tema, como este curso na PUC-SP a convite do prof. Luiz Felipe Pondé, é a seguinte: este não será um livro para você que usa avatar de cavaleiro medieval e acha que vai reinstaurar a civilização cristã do século XIII. Piadas à parte, é importante frisar que realmente eu não estou interessado em escrever um livro que faça parte das narrativas construídas pelas guerras culturais, isto é, pelos grupos que fazem do radical conflito ideológico, na cultura e na vida social, o seu modo de operar politicamente e de viver em sociedade. O livro toma esse conflito como objeto de análise, isto é, eu quero entender a lógica desse discurso e dessa prática.

Como abordar isso? Bem, eu divido essa resposta em duas partes. A primeira é a seguinte: o livro apresenta a tese segundo a qual o debate público tradicional brasileiro, dominado quase que exclusivamente pela esquerda (em todas as suas variantes) durante mais de 40 anos e realizado normalmente nos veículos tradicionais (grande imprensa, circuito editorial, principais universidades e centros de pesquisa) sofreu um deslocamento radical nos últimos dez anos, com o triunfo da universalização do acesso à internet e do modelo de informação e debate por meio das redes sociais. Essa mudança se deu tanto porque houve uma quebra da hegemonia da esquerda – ideias conservadoras, liberais e libertárias acabaram ingressando ou reingressando na vida inteligente do país –, quanto porque o meio (e isto é bem importante) pelo qual essas ideias se difundiram foi outro: o ambiente estridente, raso e pouco confiável das redes sociais. Assim, a quebra da hegemonia da esquerda na cultura, no pensamento e no debate público se definiu por muito barulho, muito radicalismo e pouca solidez intelectual – em uma palavra, mais ao modo de pundits da Fox News do que ao modo de think tanks e novas gerações intelectuais influentes.

A segunda parte da resposta consiste em reconhecer um traço específico, próprio de todas as guerras culturais, a saber: só há guerra cultural no sentido relevante quando há três questões em disputa – sexualidade, religiosidade e etnia. Fora disso, o que temos são as tensões normais de sociedades plurais e complexas. Agora, quando as tensões envolvem radicalizações nesses três domínios, sexo, religião e raça, aí temos as culture wars ao modo do que vimos nos Estados Unidos e, mais recentemente, no Brasil. É isso que explica a predominância das pautas morais nos grandes conflitos que definem as guerras culturais – pode ser a confusão em torno da exposição do Robert Mapplethorpe no Corcoran em 1989, em Washington, como pode ser a gritaria em torno do Queermuseu, no Santander em Porto Alegre no ano passado (2017). Não é porque um artista faz uma obra que contraria tendências, desagrada o público ou é formalmente radical que nós temos instaurada a lógica da guerra cultural – em regra geral, esses gestos artísticos culturais se esgotam no circuito de consumidores e produtores da cultura, nada com muita consequência para fora de um pequeno grupo. Agora, quando envolve, como nos casos que eu citei, a religiosidade das pessoas, a sexualidade (o gueto gay retratado nas fotografias de Mapplethorpe, ou a exibição de temas sexuais para as crianças no Queermuseu), tudo isso temperado pelo problema do financiamento público dessa produção artística, aí a combustão é certa. E mais não digo para que leiam o livro, que espero concluir nas próximas semanas, logo após este último curso na PUC-SP.  

 

4 Uma de suas (também minha) grandes referências é o ensaísta francês – sobretudo europeu, como ele certamente gostaria de ser chamado – George Steiner. Ele me parece ser pouco lido, citado, no Brasil. Talvez porque sua obra fuja às definições ideológicas e ao proselitismo político; os temas “polêmicos” da última hora. O que dizer de George Steiner?

Steiner é uma de nossas predileções comuns há tempos, eu sei, e concordo com você que estamos devendo em leitura no Brasil ao nosso grande Mestre: lamentavelmente, sua imensa e magnífica obra não conseguiu encontrar em nosso País o público que merecia. À exceção das publicações da Companhia das Letras no final dos anos 1980, dois títulos pela editora Globo e da editora Record mais recentemente (com dois títulos espetaculares, Nenhuma Paixão Desperdiçada e Lições dos Mestres), e uma ou outra exceção, parece não ter havido interesse em sua obra, afinal, são dezenas de títulos importantes nunca traduzidos.

Steiner é o mestre de um tipo de humanismo – aquele mesmo de que eu falava como uma ambição muito pouco claramente formulada na minha adolescência – que combina profundidade, rigor e abrangência que gradativamente desapareceu do horizonte de formação dos acadêmicos, pensadores e intelectuais mesmo nos grandes centros europeus e americanos. Ele será, para sempre, uma referência à parte – alguém capaz de escrever um poderoso e inventivo ensaio sobre a morte da tragédia, sobre literatura russa do século XIX ou sobre uma filosofia da tradução, ao mesmo tempo que escrevia com intensidade e regularidade para publicações de divulgação, como a New Yorker, bem, esse é um tipo humano que não se repetirá mais. Mas sua lição, seu exemplo, este seguirá, e caberá aos seus leitores, talvez, a tarefa de serem mais que isso, e alçarem-se à precária condição de discípulos.

 

5 Um de seus empreendimentos mais importantes é a plataforma “Estado da Arte”, no Estadão, que fez dois anos de vida, dias atrás. Dois anos de um site que foge ao popularesco é quase uma eternidade, na internet. Fale um pouco sobre o site e, principalmente, sobre o futuro desse projeto e de outros que estão por vir.

O projeto do Estado da Arte, para o qual você gentilmente colaborou em seu início, inclusive, é uma iniciativa combinada do Marcelo Consentino e minha. Eu vinha desenvolvendo, em 2014, um projeto para um blog coletivo chamado O Estado da Questão, aos moldes do The Stone, no New York Times, que é voltado à filosofia e à divulgação de temas de filosofia e ciências sociais para o grande público com pesquisadores e professores, consagrados ou iniciantes. Como estava no meu primeiro ano de colaboração com a revista Veja, a ideia inicial era a de que o projeto deste site ficasse por lá. Por uma série de razões isso não deu certo, e quando eu voltei de uma temporada de pesquisa para o meu doutorado em Veneza, Marcelo e eu começamos a ajustar os interesses comuns, pois ele havia criado um projeto, chamado Estado da Arte – o cânone em pauta, de podcasts de divulgação acadêmica, científica e cultural. O modelo era o excelente In Our Time, da BBC Radio 4. Combinando esforços, decidimos levar o projeto ao Estadão para uma parceria de mídia muito proveitosa, e nos tornamos uma plataforma multimídia de debate de ideias contemporâneas e de divulgação e análise de alta cultura como, penso eu sem falsa modéstia, há poucas por aí. Tudo isso se deve ao engajamento de um conjunto de mais de 30 colaboradores regulares, quase militantes, para os artigos, e de um apoio, sob a forma de patrocínio, do Instituto CPFL para a produção de nossos podcasts.

Agora, a partir do fim de 2018, estamos entrando em uma nova etapa: conseguiremos integrar melhor os conteúdos de nossas páginas, com artigos, podcasts e acervo de clássicos, sob uma cara mais de revista digital, mesmo. Acho que essas novidades ajudarão, do ponto de vista da forma e da navegação, a consolidar o Estado da Arte como uma referência do pensamento independente, da reflexão mais aprofundada e da defesa do papel da alta cultura no debate público.

 

6 Estamos às vésperas de mais uma eleição presidencial. Conhecendo-o como conheço, sei que não está feliz com as opções do cardápio. Você se preocupa com uma quebra da ordem democrática ou algo parecido? Entre os dois, há quem lhe pareça… pior?

Como você deve ter lido, eu escrevi um artigo, “A Cruz e a Espada”, no qual argumento que, apesar das razões muito pragmáticas para votar em um ou outro candidato, recuso totalmente a retórica dos militantes de ambos os lados de que há uma superioridade moral em um ou em outro. Isso é completamente falso. Estamos diante de duas alternativas iliberais, antidemocráticas e autoritárias; estamos diante de duas candidaturas sem compromissos com a democracia, com o pluralismo de valores e com o respeito às instituições; duas candidaturas que fizeram e fazem história com louvores a ditaduras, a torturadores e perseguidores políticos, a agentes do arbítrio e da violência como forma de fazer política.

A diferença está em que apenas um lado, o lado da candidatura do PT, consegue fazer tudo isso e ainda passar por “polo democrático”, de “resistência ao fascismo”, quando na verdade são eles, os petistas, precisamente a ameaça à democracia e o fascismo (entendido aqui como expressão retórica intensificadora para “autoritarismo) que atormentam a sociedade brasileira há quase quarenta anos. Isso se deve ao fato de o PT ser um partido que sempre se recusou a participar da democracia brasileira de maneira plena, sendo constitutivamente autoritário e antidemocrático. O PT se recusou a participar da eleição no Colégio Eleitoral que elegeu Tancredo Neves e selou nossa saída da ditadura militar; se recusou a assinar a Constituição Federal de 1988; se recusou a participar do governo de transição após o impeachment de Fernando Collor em 1992; militou ardorosamente contra o Plano Real e todas as conquistas econômicas e sociais do Brasil moderno produzidas no governo de Fernando Henrique Cardoso; sequestrou a história do Brasil ao assumir o governo, em 2003, falsificando a paternidade de nossa estabilidade econômica e de nosso progresso social; estruturou o maior esquema de corrupção da História para fraudar a democracia brasileira e se perpetuar no poder de forma ilegal, revelando sua combinação de corrupção mafiosa e totalitarismo tradicional; financiou, por convicção ideológica e reacionarismo mental de esquerda, e com o dinheiro roubado escandalosamente aos brasileiros, as piores ditaduras em ação nos anos 2000 e 2010 (Cuba, Venezuela, Angola, Zimbábue…); tentou, mais de uma vez, como governo, amordaçar a imprensa e, como partido, assiste passivo (se é que não incentiva) a prática da perseguição a jornalistas, em diversos casos chegando à violência física; desafia a justiça como regra e desrespeita a lei por natureza.

O que quase quarenta anos dessas práticas nos legaram? Bolsonaro – em quem não votei e não votarei.

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