Emmanuel Santiago (Arquivo pessoal)| Foto:

EMMANUEL SANTIAGO (1984) nasceu em São Lourenço/MG e hoje reside em Jacareí/SP. É poeta, tradutor, crítico literário e professor de Literatura; autor de Pavão bizarro (poesia) e A narração dificultosa (crítica). Doutor em Literatura Brasileira e mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP; licenciado em Língua Portuguesa e bacharel em Estudos Literários pela UFOP.

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1 Como é que se deu isso de escrever poesia; de ser poeta? Trace o seu itinerário de Pasárgada.

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A escrita da poesia surgiu, para mim, simultaneamente com o interesse pela leitura da poesia, o que se deu logo nas primeiras aulas de Literatura do Ensino Médio. A professora leu para nós, os alunos, o soneto de Camões “Alma minha gentil, que te partiste”. Fiquei encantado pelo ritmo do discurso, pela fluidez das palavras. Então, ela ensinou o que era métrica e o quanto tal técnica estava relacionada ao encantamento que experimentei durante a leitura do soneto. Naquele mesmo dia, fiz meu primeiro soneto, de pé quebrado (sem as tônicas obrigatórias, os ictos). Durante dois anos, escrevi praticamente apenas versos metrificados, depois vieram as experiências com o verso livre. Ao longo do Ensino Médio, acumulei uns trezentos poemas, um terço deles, sonetos. Na graduação (em Letras), tive a oportunidade de ter como professores dois talentosos poetas e, cada um a seu modo, mostrou-me o quanto minha poesia era ainda pueril e desleixada. Resolvi levar o negócio a sério e pus-me a estudar a técnica; no final do processo, joguei os trezentos poemas da adolescência, literalmente, no lixo. É dessa época minha descoberta de João Cabral de Melo Neto, que foi fundamental no meu processo de amadurecimento como poeta. Em seguida veio T. S. Eliot, tanto sua poesia quanto seus ensaios. Meu primeiro livro, Pavão bizarro, traz poemas que foram escritos desde a época da graduação até meados do doutorado, num arco de dez anos (talvez, daí, certa irregularidade do conjunto) e representa esse longo e demorado esforço de domínio da técnica. Estou preparando o segundo livro, que, se tudo der certo, deve sair no segundo semestre de 2018.

 

2 Sua poesia é tecnicamente rigorosa; só é poeta quem domina as formas fixas ou isso é coisa de Bilacs de fancaria?

Acredito que o domínio da métrica e das formas fixas não é obrigatório para que alguém se torne um grande poeta. Aliás, acho mesmo pernóstico quem acredita que, fora das formas fixas, não há verdadeira poesia. Penso que o conhecimento da métrica ajuda o autor a desenvolver e a apurar seu senso rítmico, o que costumo chamar de “ouvido interno”; ajuda-o a “afinar o instrumento”, mesmo na hora de escrever em versos livres. Dou um exemplo: num dos poemas do meu Pavão bizarro, “Vênus de Milo”, há um verso que é o seguinte: “a milenar beleza está”. Originalmente, o verso era “a beleza milenar está”, que me soava frouxo. Por que isso se dava? Em “beleza milenar” temos um grande intervalo entre as sílabas mais fortes (“be/ le/ za/ mi/ le/ nar”), o que faz toda diferença num verso curto. Em “milenar beleza”, o intervalo diminui para uma sílaba e dá maior consistência ao verso (mi/ le/ nar/ be/ le/za). É o tipo da coisa que um poeta, intuitivamente, poderia ter percebido, mas, se ele está acostumado a lidar com a métrica, é algo que pode ser percebido mais conscientemente.

 

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3 Se pudesse, você revisaria o cânone (em português brasileiro)? Melhor: quem, dos poetas, é valorizado demais pra você; e quem é valorizado de menos?

Como minha pesquisa atual se relaciona com o parnasianismo brasileiro, então posso dizer que estou, sim, numa empreitada para modificar o cânone da poesia brasileira. Entretanto, quando falamos da formação do cânone, há diferentes critérios. Um deles é o juízo de valor: mereceriam estar no cânone aqueles autores que atingiram maior qualidade poética ou maior relevância em sua obra. Contudo, esse é um critério um tanto relativo, porque depende não apenas do gosto pessoal de quem julga, mas também das referências literárias e teóricas mobilizadas. Para os concretos, por exemplo, preocupados com a inovação das formas poéticas, Sousândrade é o mais interessante de nossos poetas românticos; para um tradicionalista, Gonçalves Dias, que dominava como poucos a versificação, é-lhe superior. Já para um leitor preocupado com a função social da poesia, Castro Alves, que se bateu contra a escravidão, pode ser o mais interessante de todos.

Outro critério é o histórico. Neste caso, procura-se constituir o cânone com base naqueles autores não necessariamente mais interessantes (esteticamente falando), porém mais representativos de uma tendência ou mais influentes entre os poetas das gerações posteriores. Ou seja: interessa criar uma imagem coesa do desenvolvimento de nossa tradição literária. Cada um desses critérios tem suas desvantagens. O critério meramente estético tende a oferecer uma imagem lacunar da história literária, ignorando o substrato de autores que precisaram existir para possibilitar o surgimento de um grande nome; incorre-se, constantemente, na ideia equivocada de “gênio”. Já o critério histórico apresenta uma série de autores cujo interesse se resume ao papel que eles assumiram em determinado momento de nossa história literária, mas que não comunicam nada de relevante ao leitor contemporâneo. Conjugar esses dois critérios é algo dificílimo de se fazer.

Assim, autores considerados supervalorizados segundo um critério estético, podem ter sua posição no cânone justificada pelo critério histórico. Dou como exemplo o Mário de Andrade poeta. Considero-o muito inferior a Manuel Bandeira ou mesmo a Oswald de Andrade, mas sua importância histórica é incontestável. Uma história da literatura brasileira que ignore Pauliceia desvairada está, certamente, incompleta. Acho um livro chatíssimo, mas é preciso conhecê-lo. Também não acho que Paulo Leminski seja essa Coca-Cola toda; era um talentoso poeta, que acabou sucumbindo à tentação do fácil; que sacrificou parte de seu potencial para se tornar acessível a um público de parca formação literária (o que ele, ao contrário, tinha muito). Contudo, Leminski, mais do que um poeta essencial para se compreender o desenvolvimento atual da literatura brasileira, é, talvez, o poeta de maior sucesso de público nos dias de hoje. Nesse sentido, é um autor mais do que relevante para quem pretende entender o que anda acontecendo em nosso sistema literário.

 

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4 A poesia brasileira está à altura da melhor poesia mundial? Há, no Brasil, vivos ou mortos, poetas tão grandes quanto os grandes poetas dos outros?

Sim. Tenho a convicção de que a poesia brasileira já rendeu alguns nomes de grande envergadura poética, como Carlos Drummond de Andrade, Jorge de Lima, Murilo Mendes, João Cabral de Melo Neto, entre outros. Sobretudo, a partir da década de 1930, parece-me que o Brasil atingiu sua maturidade poética. Muitas vezes, o que orienta nossa percepção da grandeza de um determinado autor é seu reconhecimento internacional. No caso de nossos autores, há que se levar em conta que escrevem numa língua que ocupa uma posição periférica na cultura ocidental e que dialogam com uma tradição literária — a das literaturas de língua portuguesa — praticamente desconhecida pelos grandes centros legitimadores da literatura. Pouco reconhecimento internacional, portanto, não implica em baixa qualidade estética. Deveríamos nos acostumar à ideia de que estamos sentados sobre um tesouro que o mundo, talvez, nunca venha a conhecer.

 

5 A respeito da tradução de poesia, e sei que você é entusiasta do exercício, o resultado é a mesma poesia, ou é outra coisa? Ler um poema traduzido vale, compensa, significa ter lido o poema de fato, original, ou estamos lendo outro poema?

Acho que o poema traduzido é um texto diferente do original. Contudo, um parente próximo. O poema traduzido, além de trazer ao leitor uma parte essencial da mensagem do original, deve tentar recriar, no idioma de chegada, uma experiência de leitura semelhante à daquele. Por isso considero importante não apenas a reprodução dos aspectos técnicos-formais, como também, às vezes, sua adaptação às condições do novo idioma. Por exemplo, estou me aventurando a traduzir os sonetos de Shakespeare, todos eles, com a exceção de um, compostos em pentâmetros iâmbicos (basicamente, um verso de dez sílabas poéticas, alternando uma sílaba átona e uma sílaba tônica). Esse esquema é fácil de ser obtido em inglês, que é uma língua muito mais monossilábica que o português. Em nossa língua, no entanto, os pés iâmbicos (o esquema átona/tônica) soam, digamos assim, de um jeito meio “primitivo” (para se ter uma ideia próxima do que estou falando, basta ler o canto IV do poema épico I-Juca Pirama, de Gonçalves Dias). Penso que os versos shakespearianos perdem certa desenvoltura quando simplesmente se transpõem os iambos para o português. Por isso optei por uma solução que remete aos pés anapésticos, com duas átonas e uma tônica, solução menos rígida, porém ritmicamente bem marcada, como os versos originais. Além disso, a solução mais espontânea seria traduzir os iambos shakespearianos em decassílabos heroicos (versos de dez sílabas poéticas, com uma tônica obrigatória na sexta), que são os versos tradicionais do soneto. No entanto, sendo o inglês foneticamente mais sintético que nossa língua, no geral é difícil manter a integridade semântica do original, por isso optei por um verso de doze sílabas poéticas. Assim:

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“Shall I compare thee to a summer’s day?

Thou art more lovely and more temperate:

Rough winds do shake the darling buds of May,

And summer’s lease hath all too short a date” (Sonnet XVIII)

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“Poderei comparar-te ao fulgor do verão?

Tu és tão mais amável e tão mais ameno:

A tormenta de maio a flor tolhe em botão

E o verão se consome num prazo pequeno”

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É um novo poema? Sim, mas nem tanto. Acredito que quem o lê terá uma experiência estruturalmente análoga, embora diversa, da do texto original.

 

6 Bob Dylan ganhou o Nobel: os suecos estão oficialmente gagás ou letra de música também é, ou pode ser, poesia? 

Letra de música é texto poético, sim, e ponto final. Contudo, quando dizemos “poético”, não vai aí nenhum juízo de valor. Um mau poema não deixa de ser um poema, por mais sofrível que seja. Para mim essa não é a verdadeira questão, que deveria ser a seguinte: uma letra de música pode ser um bom poema? Em geral, numa canção, os aspectos poéticos aparecem subordinados aos aspectos melódicos, possuindo uma existência parasitária, digamos assim. Aquele verso que soa tão bem aos ouvidos, pode ser que, quando simplesmente lido, sem o suporte da música, não se sustente; fique bobo. Entretanto, há compositores que conseguem dotar suas letras de um elevado grau de autonomia poética. No caso de Bob Dylan, o jeito meio falado com que ele canta, bastante econômico e direto, favorece que isso aconteça, posto que suas composições tendem a se adequar a seu canto. No Brasil, tivemos a felicidade de contar com um bom número de compositores extraordinários, que elevaram as letras de música a um novo patamar; alguns deles criando textos de considerável riqueza poética. Veja-se, por exemplo, o “Samba da bênção”, letra de Vinícius de Moraes:

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“É melhor ser alegre que ser triste,

Alegria é a melhor coisa que existe,

É assim como a luz no coração.

Mas, pra fazer um samba com beleza,

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É preciso um bocado de tristeza,

É preciso um bocado de tristeza,

Senão não se faz um samba, não.”

 

Aqui, a despeito da coloquialidade, temos versos decassílabos perfeitos, um dos mais tradicionais da poesia de língua portuguesa.

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Não é sempre, porém, que uma letra de música atinge tal grau de autonomia poética. Na verdade, uma boa letra de canção não necessariamente funciona sem a música, isto é, não necessariamente funciona como um bom poema. Muitas vezes, a boa letra é aquela que se funde tão completamente à música que se torna indissociável dela, assim como uma letra que funcione bem como poema pode não se encaixar muito bem na melodia.  E é aí que mora o perigo. É bastante comum que jovens poetas, muito mais familiarizados com o cancioneiro popular do que com a poesia dos livros e da tradição oral, acabe compondo versos que soam como letras de música em que se sente falta de uma música que lhes dê alguma vida. Acredito que, na falta de um contato profundo com a poesia em outros suportes (orais ou escritos), corre-se o risco de o ouvido interno viciar nas facilidades da poesia cantada, que, na grande maioria das vezes, apoia-se em recursos extra-poéticos.