GABRIEL ROSTEY é consultor em política urbana. Sócio-Diretor na empresa Culturb Tendências & Soluções, cursou mestrado em Planejamento Urbano e Regional pela FAU – USP. Ex-Secretário Geral da Associação Preserva São Paulo. Colunista do Estado da Arte e do Esquina.
1 A tendência à gentrificação é causa ou sintoma da má distribuição populacional no espaço urbano? Se é que faz sentido essa pergunta.
Não vejo uma tendência conceitual à gentrificação. A ameaça real que ela representa é restrita a um punhado de cidades riquíssimas, internacionalizadas, cobiçadas por profissionais e estudantes de todo o mundo, e que passam a ser tão disputadas em enormes porções (quando não inteiramente) de seus territórios, que pessoas se mostram dispostas a desembolsar valores considerados espantosos para viver ali. Ninguém as obriga a fazer isso, ou seja, algum motivo deve ter para que façam essa decisão. Entretanto, a massa de habitantes dessas cidades já é devidamente “privilegiada”, pois somente lugares realmente prósperos podem apresentar um mercado desses, e essa prosperidade também estará presente no nível educacional da população, na qualidade de suas instituições e equipamentos culturais, na infraestrutura de serviços e nos altos salários (mesmo para empregos menos qualificados).
Há várias interpretações diferentes e mesmo confusão sobre o tema. Antes de tudo, é necessário definir o que é, de fato, gentrificação. Para muita gente, qualquer espécie de valorização imobiliária é “gentrificação”. A meu ver, o termo se vulgarizou e foi deturpado por duas razões: a primeira é o fato de ser um jargão do urbanismo, cujo uso é sedutor por denotar que a pessoa já é uma “iniciada” no assunto (quem sabe ela não dá a sorte, até, de o interlocutor ser obrigado a revelar o desconhecimento da palavra e perguntar do que se trata!), e também pelo “denuncismo social” que tanto caracteriza nosso mundo de hoje e, no fundo, tem o objetivo de destacar as mazelas do “capitalismo cruel e opressor” e demandar intervenção estatal para impedir que “aquelas pobres almas decidam vender suas propriedades e se beneficiar da valorização de uma área”, ou que, no máximo, pessoas não possam mais pagar o aluguel de onde moravam, e tenham que mudar para outra região, algo totalmente natural da dinâmica imobiliária urbana. Recomendo este artigo sobre o tema: It’s time to give up the most loaded, least understood word in urban policy: gentrification
Toda essa neura com gentrificação no Brasil é algo que realmente me incomoda. Somos um país pobre, a falta de qualquer qualidade urbanística é norma por aqui. Temos vários bairros que são verdadeiramente abandonados, com baixíssima população residente. No entanto, ao anúncio de qualquer medida que visa incrementar a qualidade urbana de algum lugar, logo surgem os arautos do caos revelando a “intenção escusa de valorização imobiliária que aquela melhoria urbana esconde”, e lutando pela manutenção do nosso subdesenvolvimento. A irracionalidade é tanta, que chegam a repetir a cantilena para os centros de nossas cidades, conhecidos por terem quantidade de moradores muito aquém da desejável.
Entendo que “gentrificação à brasileira” é, por exemplo, o que foi cometido na região da antiga Avenida Águas Espraiadas (atual Roberto Marinho), em São Paulo, quando o poder público, aliado a alguns incorporadores, decidiu valorizar uma região então pobre (e até favelizada) transformando-a artificialmente no novo eixo de desenvolvimento da cidade, para surrealmente receber modernas torres “triple A”. O resto é histeria.
2 Preservação, tombamento, zoneamento e propriedade privada: isso tudo pode ser conciliado – de verdade?
Pode ser bem conciliado sim, sem dúvidas, e existem muitas cidades bem resolvidas mundo afora para atestar isso. O problema é que também se pode fazer tudo errado (e nós brasileiros temos uma vocação especial para isto). Entendo que o conceito de propriedade privada em lotes urbanos não pode ser tratado como é, por exemplo, para geladeiras. Ela realmente precisa de regulação, pois os lotes estão relacionados entre si na formação e interação com o espaço público, o que os torna mais do que um mero “amontoado de propriedades privadas”. Mas essa regulação deve ser muito menos restritiva do que hoje: deve ser, basicamente, de controle de poluição sonora e visual, divisão dos lotes e interação com a rua.
No Brasil a falta de noção e a sanha intervencionista é tão grande, que até pouco tempo atrás a Prefeitura de São Paulo exigia que os edifícios novos oferecessem um número mínimo de vagas de garagem em função da quantidade de apartamentos; depois, pulou para o exato extremo, com a definição de um limite máximo de vagas por apartamento. E enquanto essas mentes pretensamente iluminadas insistem em definir os usos admitidos, a forma de ocupação do terreno, os recuos obrigatórios, a quantidade de vagas de garagem, a altura e o tamanho da construção e o que mais der na telha, nossas cidades seguem verticalizando sem adensar, voltadas para o carro, sem uso misto etc. Qual é o sentido de o Estado se meter a decidir se determinada região pode ter uma padaria ou não? De proibir que uma residência seja também o endereço comercial do morador? E podem negar à vontade, mas a verdade é que o modelo das nossas grandes metrópoles foi baseado em ideias e legislações gestadas pelos urbanistas brasileiros, que vivem querendo empurrar a responsabilidade para os políticos ou os “especuladores imobiliários”.
Quanto ao tombamento, a coisa já é bem diferente. Talvez o nome (que não tem tradução para outros idiomas) dê a impressão de que se trata de uma “jabuticaba”, aquelas bizarrices que só acontecem no Brasil. Mas a prática de proteger edifícios históricos ou de grande representatividade é difundida em todo o Ocidente. Não é por caridade que locais muito mais capitalistas do que o Brasil, como Inglaterra e Estados Unidos, até hoje ostentam um enorme acervo de construções antigas (normalmente com muito menos área construída do que teriam novos empreendimentos). Para ilustrar, a cidade de Nova York tem mais de 36 mil edifícios “tombados”, (declarados como landmarks) enquanto em São Paulo são cerca de 3.600, ou seja, lá tombam literalmente dez vezes mais do que aqui. O problema é que o tombamento brasileiro é realmente muito engessado e “exigente” (como exemplo, aqui se exagera na área envoltória de bens tombados e praticamente se ignora o “fachadismo” – do francês façadisme – que é a quase reconstrução da parte interna e manutenção apenas da fachada) e ninguém parece querer melhorar isso. Inclusive é muito frequente que os próprios profissionais dos órgãos de preservação brasileiros falem contra o instrumento do tombamento, com frases como “não adianta tombar e não conservar depois”. Pois eu afirmo que adianta sim, afinal, uma vez tombada, a construção pode ser recuperada em qualquer outro momento. O que difere, por exemplo, o Pelourinho detonado de antigamente, para o de agora, é o restauro. Já se o edifício não é protegido, tende a ser demolido e isso equivale à “morte” daquele tipo de construção, daquele tipo de ocupação naquele bairro e assim por diante.
Outra armadilha é a de exigirem tombar apenas conjuntos, e não construções isoladas (que se estão isoladas, é justamente por serem mais raras, ora pois!). Um bom exemplo de política de preservação por aqui são as APACs – Área de Proteção do Ambiente Cultural – do Rio de Janeiro.
Para finalizar, é necessário que, complementando o tombamento, sejam oferecidas boas políticas de benefícios para o proprietário de modo que a preservação não vire um “abacaxi”. Não é difícil, basta aprender com a experiência internacional, e práticas como fundos exclusivos de empréstimos e subsídios, ou isenção de impostos para bens tombados são necessárias para que as limitações advindas do reconhecimento de valor público daquele imóvel sejam compensadas, de modo a tornar o tombamento algo desejado.
3 Mobilidade: cobrança de uso de carros de passeio, investimento em transporte público, tecnologias disruptivas – o que tem de verdade e o que tem de mentira nessas possibilidades?
Esse é o campo das questões urbanas que mais me parece aberto e relativo. A diferença de configurações urbanas, de infraestrutura de transportes, de tamanho da área urbanizada, relevo, trajetória histórica dos modais de transporte etc. fazem com que uma boa solução para uma cidade não tenha simplesmente nada a ver para outra. Até mesmo o regime jurídico e o sistema de governo fazem diferença nos assuntos de mobilidade: como exemplo, a China constrói em profusão modernos e gigantescos sistemas de metrô (que são sempre a melhor solução de alta capacidade) não apenas por causa da enorme pujança econômica que vive, mas também porque tem facilidades de custos e prazos em relação às democracias ocidentais.
Cidades planas e menores, como Amsterdam ou Copenhague, podem ter nas bicicletas um modo de transporte realmente fundamental. Já uma urbe gigantesca, espalhada, com relevo muito acidentado e concebida com foco no carro, como São Paulo, tem um teto muito mais baixo (por mais que seja um uso a ser estimulado).
Nem mesmo pessoas da área de tecnologia conseguem prever quais serão as inovações dos próximos três anos, e não serão os urbanistas a conseguir. Vi um representante do Uber dizer que se todos os carros de uma cidade passassem a oferecer caronas pela empresa, a frota de veículos poderia diminuir para cerca de 5% da atual. Isso dá uma ideia do potencial de mudança que está em aberto. Mas, ao mesmo tempo, sabemos que toda a população não vai passar a usar e dirigir para o Uber, o que mostra que é um campo com muitas potencialidades e crescimento ainda incerto. Para muita gente interessa fazer todo esse auê, esse buzz, vender o sonho de iminente surgimento de uma nova sociedade. Eu particularmente acho que tudo pode vir a mudar, mas apenas por algo novo que venha a surgir. Não creio que o desenvolvimento de nada do que já conhecemos vai ter um impacto tão decisivo para provocar uma revolução nos modais ou no estilo de vida urbano.
A respeito de cobrança pelo uso de carros de passeio, sou contrário em tempos de “economia do compartilhamento” incipiente. Quando todos celebramos que uma coisa boa dos tempos atuais é “não sermos mais apenas uma coisa”, podermos ter nossa profissão e dirigir para aplicativos como o Uber nas horas vagas, não vejo sentido em cobrar pedágio urbano. Em Londres, por exemplo, uma organização poderosa como o Uber está isenta do pedágio urbano, mas isso depende de negociações específicas e pode prejudicar novas iniciativas inovadoras, afinal, qualquer novo “prestador de serviços disruptivos” sofreria a incidência desse tipo de encargo a priori. Em termos práticos, a arrecadação com o pedágio urbano em Londres ficou aquém da esperada (equivale a cerca de 5% dos investimentos gerais em mobilidade), o trânsito diminuiu no centro, mas cresceu fora (as pessoas vão de carro e estacionam perto do metrô da área não pedagiada) e os custos para a população residente cresceram. Vejo como uma iniciativa que acaba mais por punir o uso do automóvel do que por efetivamente melhorar outras coisas.
4 Favela: problema ou solução?
Enquanto locais impróprios para se viver, sem infraestrutura, saneamento básico ou espaços públicos, violentos, informais e que mal permitem o acesso de determinados tipos de veículos ou serviços, as favelas jamais podem ser vistas como solução.
Mas como no passado a nossa sociedade foi incapaz de propor qualquer alternativa e consentiu com o crescimento desordenado delas, hoje não resta alternativa a não ser reconhecê-las e procurar dotá-las de condições para que sejam integradas ao resto da área urbana. Infelizmente a urbanização de favelas perdeu força nos últimos cinco anos, e o excelente trabalho que vinha sendo feito para adequação de vias, eliminação de construções em situação de risco, regularização fundiária e aberturas de espaços públicos deu lugar à priorização de programas de produção de moradias tenebrosas, como o Minha Casa Minha Vida, à questão dos “movimentos de moradia” invadindo/ocupando imóveis vazios (que são em uma quantidade pequena se comparada à da produção imobiliária, e ainda mais irrelevante diante do déficit habitacional existente) e à questão das UPPs -que é mais de retomada de determinado território por parte do Estado do que de planejamento urbano propriamente dito.
Apesar de todas essas mazelas, as favelas têm alguns pontos positivos se comparadas ao modelo de urbanização praticado no Brasil nas últimas cinco décadas. Apresenta alta densidade, muito uso misto, as distâncias são curtas e caminháveis, ou seja, é como uma perversão do New Urbanism em relação à escala humana no desenho urbano. Por isso é importante adequar as favelas já consolidadas para que as atividades de lá possam ser formais e regularizadas, enfim, tornem-se uma “terra de alguém” reconhecida pela cidade oficial.
Posto isso, é fundamental que haja uma pactuação nacional para que não se permita o surgimento de novas favelas, e que as de pequenas dimensões sejam eliminadas. É algo indesejável em si, e que tem boa participação em vários dos problemas que nossa sociedade vive hoje. Mas algumas são tão grandes, que não resta alternativa que não tentar adequá-las, e permitir que todas aquelas pessoas finalmente possam viver como cidadãos plenamente inseridos.
5 Por que nossas cidades, de maneira geral, são tão feias? Ainda: é possível haver projeto de harmonia estética urbana sem intervenção estatal?
Olha, quando vi a sua pergunta, fui pensando o que tornava as nossas cidades especialmente feias, e cheguei à conclusão que, de verdade, é praticamente tudo: fiação aérea indecente; arborização irregular ou inexistente; uso disseminado de tinta (em vez de revestimentos e materiais aparentes) e construções pintadas com cores bizarras; pichações; muros altos; feia comunicação visual de estabelecimentos comerciais; caiação de guias, postes e até árvores; calçadas esburacadas e sem padrão; mobiliário urbano tosco; empenas cegas dos prédios antigos que ficavam no alinhamento da rua e depois receberam um vizinho com recuos etc.
Basicamente, vejo como únicas características belas das nossas cidades em comparação às demais, as ruas sinuosas e o relevo acidentado da herança da ocupação portuguesa; locais que têm níveis diferentes, como se a cidade se passasse em mais de um “andar”; as vistas que se descortinam quando menos esperamos; o conjunto de edifícios altos que impressiona quando vistos à distância, formando um skyline interessante; a mistura de construções de diferentes períodos e estilos em uma mesma área; a relação com as praias, orlas vibrantes, lagoas, serras e demais elementos naturais. De resto…
Eu particularmente não vejo a harmonia estética como necessariamente algo belo. Existem locais harmoniosos, com tudo ordenado, que me parecem extremamente monótonos. Podem ser bonitos, mas não me tocam. Ao passo que locais desordenados, com um certo caos, podem ser lindos. Uma coisa é um local ser limpo, bem conservado e sem poluição visual; outra, muito diferente, é ser planejado e ordenado. Para ilustrar, as caóticas e não-planejadas cidades medievais italianas me parecem claramente mais belas do que Canberra, exemplo de cidade planejada.
Ou seja, são coisas distintas. Uma, que é a falha das nossas cidades, tem mais a ver com questões básicas de “dignidade urbana”, quase equivalente à necessidade de uma pessoa tomar banho e escovar os dentes. E para essa, sim, é necessário que o poder público seja protagonista e reconheça nisso um valor. Já a outra é referente ao estilo de cada cidade, que depende de gostos pessoais, mas seja a perfeitamente concebida Paris Haussmanniana, ou a orgânica Santorini, não será bela sem zeladoria urbana, conservação dos prédios, com fiação aérea e postes, muros indecentes, pichações etc.
6 Brasília: faltou superego à dupla (Lúcio Costa/ Oscar Niemeyer)?
Eu diria o contrário: foi justamente o superego que fez com que criassem um ambiente que desconsiderasse tanto as pessoas, a natureza dos indivíduos e suas necessidades. O projeto de Brasília não foi fruto de um pensamento isolado da dupla, do “id” deles, mas sim da visão de mundo dos urbanistas àquela altura, que se viam como parte ativa da transformação da sociedade para o surgimento do “homem novo”. Ou seja, foi por se colocarem como soldados de uma visão ideológica, que moralmente achavam necessária a realização de um local como Brasília, que deveria servir como inspiração para que cada vez mais e mais lugares tomassem aquele rumo que eles entendiam corretos.
E é bom que se esclareça que o Plano Piloto é a materialização do desejo de urbanistas daquela época, fruto de um concurso público no qual tiveram toda a autonomia e carta branca do Estado. Não foi algo restrito àquela experiência, e muitas daquelas ideias continuaram se espalhando pelo Brasil (e até exterior) e seguem em voga ainda hoje, tanto que ainda não nos livramos de instrumentos como “zoneamento funcional” (que determina as regiões que podem receber determinadas atividades), área de ocupação, gabarito de altura etc. Para exemplificar de maneira muito clara essa influência, é só comparar, por exemplo, o tipo de cidade que se fazia antes de Brasília, como a Zona Sul do Rio, e o tipo de cidade que se passou a fazer depois, como a Barra da Tijuca.
E já passou da hora de um mea-culpa da classe dos urbanistas, pois este equívoco é uma responsabilidade que cabe a eles, que insistem em transferir a culpa para políticos e “especuladores imobiliários”. Recomendo a qualquer um a leitura do fantástico livro “São Paulo nas Alturas”, de Raul Juste Lores, que mostra, entre outras coisas, como se deu a perda de rumo do desenvolvimento urbano de São Paulo, que é ilustrativo do que se passou em todo o Brasil.
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