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Meia dúzia de perguntas para Horacio Neiva

Arquivo pessoal (Foto: )

Horacio Neiva, 30, é Mestre e Doutorando em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da USP. Advogado, professor e escritor.

 

1 Você é advogado, mestre em filosofia do direito e doutorando. Gostaria que falasse sobre sua trajetória intelectual, sua formação e suas maiores referências em teoria do direito e filosofia, vivos e mortos, estrangeiros e brasileiros.

“Trajetória intelectual” parece uma expressão muito forte para a minha ainda curta carreira acadêmica. Mas ingressei na Faculdade de Direito e, como é comum, acabei me interessando por tudo – menos pelas disciplinas propriamente jurídicas. Tive contato logo cedo com a Filosofia através de um querido professor e hoje amigo, Dr. Nelson Matos, com quem continuei a estudar durante toda a graduação. No início, no entanto, o interesse era mais enciclopédico e menos sistemático. O ponto decisivo – que inclusive influenciou minha escolha de seguir para o Mestrado e, agora, o Doutorado – foram as leituras, já na segunda metade da graduação, de dois livros: O Conceito de Direito, de H.L.A. Hart, e Lei Natural e Direitos Naturais, de John Finnis. Os livros se inseriam numa tradição com a qual tinha pouco contato – e que podemos chamar, um tanto imprecisamente, de tradição analítica – e que me impressionou pela clareza dos argumentos e da exposição. Já havia lido Kelsen no início do curso, mas a falta de bagagem filosófica combinada com a recepção um tanto quanto pobre que sua obra teve no Brasil, acabaram por afastar meu interesse no autor da Teoria Pura (um erro, aliás, que venho corrigindo nos últimos anos). Após as leituras de Hart e Finnis, passar para o debate anglo-saxão foi um passo natural. Segui com as leituras de textos de Ronald Dworkin (na verdade, releituras) e de Joseph Raz, e isso mais ou menos definiu os temas e problemas que me interessavam e, especialmente, uma certa forma de fazer filosofia do direito: menos enciclopédica e mais focada em análise de argumentos. Nesse ponto, já no final da graduação, percebi que o estudo da filosofia do direito no Brasil ainda se concentrava em abordagens muito abrangentes e, por vezes, falsamente eruditas. Procurei, feito um condenado, professores que estudassem os mesmos autores que eu estava estudando e que pudessem me dar alguma orientação. Encontrei, então, os programas das disciplinas do professor Ronaldo Macedo, meu orientador no Mestrado e agora orientador no Doutorado, em que as leituras estavam cuidadosamente organizadas em torno de problemas, cada uma delas representando passos de um debate. Li e reli praticamente todos os textos e livros recomendados, e isso virou uma certa obsessão na época: procurava os programas das disciplinas das melhores faculdades na área, comprava os livros e lia (e relia) tudo — uma prática que recomendo a todos. Mas, mesmo com o acúmulo de novas leituras, minhas referências permaneceram as mesmas: Hart, Dworkin, Finnis e Raz. Foi só no Mestrado que descobri que muita gente no Brasil trabalhava nessa área, inclusive com pesquisas de ponta. Muitos me influenciaram e continuam a influenciar: além do professor Ronaldo, Cláudio Michelon, Thomas Bustamante, Fábio Shecaira e André Coelho são autores nacionais importantes na minha formação como estudante de filosofia do direito.

 

2 Existe algo como uma “filosofia do direito” como objeto autônomo de investigação, ou a filosofia do direito tem natureza derivativa, subconjunto dum conjunto maior, como a filosofia política, a teoria do Estado ou a ética?

Há muitas questões envolvidas nessa pergunta. Em primeiro lugar, se as divisões entre as áreas da filosofia – metafísica, epistemologia, ética, filosofia da ciência etc. – são meramente disciplinares, se há realmente uma diferença de método entre elas ou se se trata do mesmo projeto filosófico concentrando-se em objetos distintos. Em certa medida, se o direito existe enquanto um conjunto bastante específico de práticas sociais, é claro que uma reflexão sobre esse conjunto de práticas poderá ser descrita como uma disciplina filosófica “autônoma”. O ponto mais interessante que a pergunta sugere, no entanto, é se é possível fazer filosofia do direito sem recorrermos a questões e problemas de outras áreas, como a filosofia moral ou da ação. Esse problema é geralmente tratado sob a denominação de “debate metodológico”. A questão que os filósofos enfrentam é saber se é possível existir uma teoria do direito que seja moralmente neutra e eticamente desengajada, a partir da ideia de uma análise filosófica do nosso conceito compartilhado de direito. Para os defensores dessa posição, o teórico do direito não precisa – e nem deve – realizar julgamentos de valor moral sobre o seu objeto (por exemplo, sobre se o direito é uma instituição valiosa, se ele possui legitimidade moral ou se é útil para alguma fim social específico) para que possa oferecer uma análise do conceito de direito, isto é, sobre o que o direito é. Críticos, no entanto, sugerem que esse empreendimento – dada a natureza argumentativa e controversa da prática jurídica – está fadado ao fracasso, e que descrever o que é o direito envolve a tomada de posição sobre questões morais e políticas controvertidas, de modo que a teoria do direito estaria mais intimamente associada a disciplinas normativas, como a filosofia moral. É importante observar, contudo, que todos os teóricos concordam que o direito pode ser estudado sob o enfoque da filosofia moral. O que os primeiros teóricos que apontei defendem é que, além dessa investigação, é plenamente cabível uma simples análise de um conceito compartilhado, sem que precisemos nos pronunciar sobre os méritos ou deméritos morais da instituição à qual aquele conceito se aplica. Tendo a concordar com a segunda posição – defendida, por exemplo, por Dworkin e por Finnis – e tentei mostrar isso em alguns trabalhos que publiquei sobre o tema.

 

3 Nos últimos anos, o Supremo Tribunal Federal virou assunto de boteco e de mídia social. Isso lhe parece sinal de que as coisas estão melhorando ou piorando? O protagonismo do STF, sua propensão “iluminista”, como diria o Ministro Luís Roberto Barroso, ajuda ou atrapalha?

É comum a observação de que há uma ou duas décadas, praticamente ninguém sabia o nome dos ministros do Supremo. Quando muito, conheciam um ou dois mais destacados, mas dificilmente mais do que isso. Hoje, é mais fácil lembrar o nome dos onze ministros do STF do que dos onze titulares do seu time de coração. Por um lado, isso é bom. Sugere que todos estamos mais atentos a uma instituição de importância fundamental para a República. Além disso, esse fenômeno tem sido acompanhado por um imenso desenvolvimento na produção acadêmica sobre o Supremo. Praticamente todos os aspectos relevantes – desde a distribuição de processos, pedidos de vistas até mesmo viés de gênero nas divergências dos Ministros – vem sendo objeto de escrutínio por parte de pesquisadores. É difícil dizer que não há um elemento positivo nisso tudo. Mais transparência, mais fiscalização e mais atenção do público. O problema é que o próprio Supremo parece não saber, ainda, lidar com tudo isso. Talvez a maior atenção do público tenha alterado o comportamento dos Ministros, ou talvez tenha apenas revelado algo que se escondia nas sombras. O fato, no entanto, é que o Supremo passou a entrar em muitas bolas divididas, e passou a fazer isso de maneira muito personalista. As pessoas não comentam as decisões do Supremo, comentam as decisões do Ministro A ou do Ministro B. O Tribunal não é visto como uma instituição coerente e coesa, mas como onze sujeitos, cada um com preferências políticas, partidárias, vaidades e desejos. Isso não é bom para um órgão que depende da percepção de sua unidade para legitimar-se enquanto um Poder. É sempre bom lembrar que os Ministros não foram eleitos, foram escolhidos num processo de baixa fiscalização e a partir de critérios muito pouco claros. Se passam a agir como agentes políticos engajados, evidentemente, prejudicam a legitimidade de todo o Tribunal. Falar de propensão iluminista, nesse contexto, é falar da propensão de alguns ministros, que se torna cada vez mais difícil de se defender num cenário em que o destino dos casos depende do sorteio da turma na qual ele será decidido.

 

4 A Operação Lava Jato cumpriu seu papel a contento?

Em larga medida, sim. No plano mais evidente, desvendou um grave quadro de corrupção, teve sucesso na identificação de responsáveis e na persecução penal. Um ex-presidente da República, um ex-presidente da Câmara de Deputados e o dono da maior empreiteira do país estão presos. Bilhões de dólares foram devolvidos aos cofres públicos e à Petrobras. Por qualquer ângulo que se olhe, como uma operação coordenada de apuração de casos de corrupção, trata-se de um sucesso. Mas não é só. A Operação Lava Jato trouxe o debate sobre corrupção para o centro do debate público, elevou as exigências de idoneidade dos agentes públicos, obrigou empresas privadas a mudarem suas políticas e forma de atuação etc. Houve exageros? Creio que sim. Mas o nível de corrupção encontrado pela operação mostrou uma enorme fratura na nossa democracia. Não é moralismo barato afirmar que, diante de um cenário de corrupção sistemática, a própria legitimidade da República está em jogo. Partidos com acesso a propinas bilionárias tem vantagens eleitorais; empresas com relações escusas com o poder político gozam de privilégios que nenhuma outra sequer cogitaria usufruir. Desbaratar esse esquema, além dos méritos próprios de prender pessoas que cometeram crimes, contribui, sem dúvida alguma, para darmos um passo em direção a padrões normais de civilidade e honestidade na política.

 

5 Apelos às “instituições” e ao “Estado Democrático de Direito” são frequentes e frequentemente ridicularizados. Acredita que estamos, de fato, pondo em risco a democracia nestas eleições?

Ao que me parece, estamos num momento de transição. O tempo dirá se a transição será boa ou ruim, mas, de algum modo, nossa concepção sobre o papel das instituições e sobre o que significa estado de direito vai mudar. Por muito tempo, os partidos políticos e as instituições – como o Congresso e o Supremo – exerceram uma forte filtragem nas vontades de parcela importante da população. O sujeito era de direita, por exemplo, mas era obrigado a votar num candidato do PSDB. Franjas mais radicais da população – que já existiam – participavam do jogo político mas eram levadas a escolher candidatos mais moderados. Isso tudo mudou. Talvez tenha havido radicalização, mas uma outra hipótese possível é que os radicais finalmente encontraram alguém que melhor representava suas posições e vontades. Os partidos tradicionais não conseguiram “filtrar” ou “frear” um fenômeno como Bolsonaro, justamente porque ele se tornou o próprio partido. Sem mediações de lideranças partidárias, de acordos institucionais e até mesmo de meios de comunicação. Ao invés de Bolsonaro ter que se adequar a um partido, foi o partido que teve que se adequar a ele. Isso marca um ponto de virada importante, em que as mediações institucionais – nas quais incluo a partidária – se tornaram irrelevantes. A própria mídia tradicional se tornou irrelevante, já que o candidato não depende mais dela para transmitir suas informações e atingir seus eleitores. É possível argumentar que, de algum modo, isso é um aprofundamento da democracia. A direita encontrou seu representante, e se uma parcela significativa da população passa a ter suas ideias efetivamente representadas na arena pública, há um claro ganho democrático. Mas também é possível argumentar que democracia envolve mais do que a simples representação: envolve, também, respeito a regras do jogo, a direitos individuais e a princípios mínimos de civilidade e republicanismo. Em outras palavras: além do majoritarianismo puro, democracia também exige instituições que permitam a convivência de maiorias e minorias, de situação e oposição etc. Mais do que o ódio disseminado, o grande risco que estamos vivendo é, justamente, o fim dos filtros institucionais, e o caminho para uma participação mais direta e baseada na expressão direta e irrefletida de opiniões e vontades imediatas. A política desenvolvida nos espaços institucionais tradicionais obriga os agentes a concessões, à moderação no discurso, a acordos – e me refiro a acordos republicanos – etc. Suprimir isso em nome de uma representação sem intermediação, na qual uma população extremamente radicalizada passa a influenciar diretamente as políticas e ações de um futuro presidente, se de um lado pode ser considerado um avanço em termos de participação, por outro pode implicar um desastre institucional para a nossa democracia.

 

6 Caso Fernando Haddad seja eleito, aparentemente teremos a incrível situação de um governo que seja aconselhado diretamente da cadeia. Há legitimidade – política – nessa candidatura?

Essa hipótese, hoje, parece cada vez mais distante. Mas, ainda assim, podemos dividir a resposta em duas partes. Há legitimidade na candidatura de Haddad, e haveria legitimidade na sua vitória – justamente a legitimidade das urnas. O problema que Haddad coloca não é de legitimidade – já que ele seria respaldado pelas urnas –, mas sim de moralidade e decoro do cargo. Ainda que petistas defendam a injustiça da condenação de Lula, respeitar as instituições democráticas envolve respeitar o veredicto dessas instituições. Se o discurso deste segundo turno é que Bolsonaro representa uma ameaça às instituições – e, segundo penso, de fato representa, pelo menos na forma tradicional como concebemos o seu papel –, a melhor saída seria que Haddad desse o maior sinal de respeito institucional que poderíamos esperar: admitir que a condenação de Lula se combate em vias próprias; que ele, enquanto condenado e preso, não pode comandar o futuro do país; e que cabe a Haddad tocar sua campanha e, eventualmente, sua presidência. Infelizmente, nada indica que Haddad ou o PT fará isso, e imaginar um Presidente que responde a ordens de um presidiário desafia o senso comum de qualquer pessoa racional. Não seria difícil desfazer essa imagem, mas, pelo visto, isso não ocorrerá.

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