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Meia dúzia de perguntas para Leonardo Miranda

Arquivo pessoal (Foto: )

Leonardo Miranda é formado em comunicação pela Universidade Federal do ABC. Desde 2013 é colunista do Globoesporte.com no Painel Tático, blog que aborda todos os assuntos do esporte com viés na tática. Cobriu a Copa do Mundo de 2018 para a Revista Época, com diversas análises e entrevistas sobre o evento. No Esporte Interativo, apresentou o programa Copa de Botão, junto a Mauro Beting. De 2013 a 2014 foi responsável pela presença digital do Fuleco, primeiro mascote de Copa do Mundo a ter redes sociais.

 

1 Entre os comentaristas de futebol, você faz um tipo de análise – uma visão do jogo que às vezes é tão falado e tão pouco compreendido – ainda nova por aqui. Como se deu a sua formação – quais são os livros e as revistas, as referências e influências do seu trabalho?

Meu interesse pela área mais estratégica e científica do futebol se deu na adolescência, quando comecei a gostar de futebol. Sempre me perguntava: por que meu avô xingava tanto um jogador e, num jogo depois, ele fazia gols e ia bem? Era algo divino, ou havia aí uma explicação racional? Me formei em comunicação e comecei a trabalhar no mercado publicitário e de comunicação, no qual atuo até hoje.

Em paralelo, comecei a buscar mais conhecimentos sobre futebol. Fiz o curso de Análise de Desempenho na CBF, o curso de Gestão Técnica do Futebol e Modelo de Jogo na Universidade do Futebol, e fui buscando leituras e conversas sobre o tema. Sempre acompanhei o blog do André Rocha, um dos pioneiros no tema. Carlos Eduardo Mansur é outro pensador. Daí surgiram Renato Rodrigues (um grande cara e amigo), Bruno Formiga e tantos outros.

Ao mesmo tempo, também cursei a formação de Políticas Públicas na universidade (um correlato com ciências sociais), o que me deu uma visão mais humana e social do esporte. O que identificamos como tática é, na verdade, uma ferramenta para interpretar o jogo. Assim como Durkheim ou Weber são teóricos que interpretam a sociedade. Assim como Marx formou uma ideia com base naquilo que ele via. Manter essa visão mais holística do futebol e buscar uma compreensão ampla dos fenômenos é o que me move.

2 A propósito do nosso mercado editorial, o futebol era assunto quase inexistente; de um tempo pra cá, começa a se consolidar. O que você espera dos próximos anos e, hoje em dia, o que há de mais interessante para acompanhar?

É interessante essa pergunta, porque acabei de assinar um contrato para a publicação do meu primeiro livro. Acredito que há uma demanda maior por conteúdo estrangeiro do que havia há alguns anos, muito por conta das derrotas do Santos para o Barcelona e depois do Brasil na Copa de 2014. Sempre quando perdemos, buscamos olhar para o exterior. Infelizmente, o mercado editorial no Brasil sempre enfrentará dificuldades por conta do aspecto financeiro. Por incrível que pareça, os livros sobre Guardiola não conseguem se fazer rentáveis. Acredito que isso parta de uma cultura de futebol muito incipiente, que valoriza mais a contação de história (livros biográficos, contos, dramas) que teorias e explicações.

3 A próxima pergunta exige um preâmbulo; peço desculpas por isso.

Noto que o ecossistema do futebol é bastante fechado e autorreferente, e isso potencializa algumas situações controversas. O papel da imprensa especializada é uma delas.

Comentaristas criticam acerbamente certos times e treinadores; os torcedores consomem essa informação e reagem a ela, criticando com ainda mais paixão os times e respectivos treinadores; os dirigentes, de costume pouco convictos e racionais, demitem os treinadores e contratam jogadores sem muito critério; os comentaristas então criticam a pressa com que dirigentes demitem técnicos e contratam jogadores…

Não pretendo culpar a imprensa pelos defeitos do futebol nacional; todos em alguma medida têm responsabilidade. No entanto, não lhe parece que há, por parte de quem comenta e analisa, um certo grau de irresponsabilidade ou descaso com a própria inteligência de todo o processo? Se o comentarista não tem paciência nenhuma e destroça – às vezes com termos humilhantes ou engraçadinhos – o trabalho de um treinador, como pode esperar que o dirigente reaja com mais cuidado? Ou que a torcida tenha paciência?… Ou que o jogador renda em campo, a despeito da pressão às vezes desproporcional?…

A palavra que você usou é perfeita: autorreferente. Parte desse comportamento acontece porque, no Brasil, o problema é sempre o outro. É o técnico, é o jogador, é o dirigente, é a imprensa. Nunca é a confluência desses fatores. Se levarmos em conta que o futebol é composto por diversos atores, e que cada um age e provoca um efeito, veremos que nenhuma das consequências negativas citadas é um ato isolado, mas sim um comportamento que se repete em todos as áreas.

A imprensa tem sim um papel muito importante, porque é ela quem narra e interpreta as ações dos atores “de lá” para o torcedor. Vejo uma grande mudança na imprensa após o 7 a 1, e fico feliz de ver que consigo influenciar colegas. Há uma atenção maior para explicar as ideias dos técnicos e um cuidado para ser menos raivoso e agressivo. A manutenção do Tite após a Copa, com apoio irrestrito, é um exemplo disso.

Mas acredito que chegamos numa espécie de limite: a do nicho. Há, hoje, dois veículos que lideram a audiência nesse futebol mais técnico: minha coluna no Globoesporte e o DATAEspn. Temos projetos independentes como os podcasts do Footure, Imigrantes da Bola, Corner e outros. Nenhum de nós se configura numa grande mídia e consegue se sustentar sozinho, ao mesmo tempo que há uma certa relevância frente a um público mais nichado. Por isso que as desculpas da “velha imprensa” (faltou vontade, faltou talento, faltou técnico) serão sempre mais fortes que qualquer análise mais técnica.

4 Percebo, entre analistas, dois tipos de preconceitos: de um lado, os saudosistas do “futebol de antigamente”, da chamada Era de Ouro, que ignoram o melhor do futebol atual; outros, dentre os mais estudiosos, desprezam aquele futebol antigo como lento, ultrapassado, “quase outro jogo”, sem ponderar que as condições físicas e estruturais eram também outras – para todos. Na sua visão, não há anacronismo e erro de perspectiva de ambos os lados?

Os dois lados, quando chegam a extremos, estão errados. A resistência ao novo não é novidade, é um instinto humano. Freud dizia que a nostalgia era, antes de tudo, o desejo pelo conhecido (passado) em contraponto ao medo do desconhecido (futuro). Radicalismo é mecanismo de proteção.

O mais próximo de uma verdade pode ser descrito assim: nem ali, nem acolá. O futebol brasileiro estava longe de ser uma maravilha suprema em sua “Era de Ouro”. Os jogos viviam vazios, o Estadual era bem ruim, nenhum time era um esquadrão de craques. Qualquer um que queira ver as finais do Santos contra Milan e Benfica, vai ver um jogo feio, físico, pegado. Ao mesmo tempo, como o jogo era diferente, os jogadores tinham mais capacidade de improviso porque frequentemente estavam em duelos individuais. Tinha, sim, mais drible, mais finta e mais jogadas de efeito.

Se entendermos o jogo de futebol como a relação do jogador e da equipe com três variáveis (bola, espaço, adversário), veremos que o futebol evolui sempre. Ficou mais rápido porque a preparação física melhorou. Ficou mais compacto porque os times começaram a se organizar melhor. Ficou mais inteligente porque novas ideias e métodos de preparo surgiram.

É uma lógica parecida com a “destruição criativa” do Joseph Schumpeter: um produto (no caso, uma ideia, um método de treino) gera um benefício e, ao mesmo tempo, um problema. Para combater o problema, surgem inovações e ideias, que criam uma solução e um novo problema, e assim por diante. Vamos pegar pela história: o 4-3-3 surgiu lá em meados da década de 1950, quando o Zagallo e o Telê Santana saíam da ponta no Flamengo para fechar o meio. Qual era o benefício? Abrir espaço para que um zagueiro pudesse chegar ao ataque, no que viria a ser a posição de lateral. O benefício gerado era ter mais um no ataque. O problema? O adversário precisava fechar esse espaço, então o outro ponta foi para o meio, formando o 4-4-2. E assim vai num looping eterno.

5 Guardiola é injustamente “acusado” de ser fanático da posse de bola, embora ele já tenha dito que a posse de bola é apenas o meio para atingir o resultado que ele quer: desempenho em alto nível e vitórias. Ele gosta de vencer, com a bola ou não. A Copa de 18, por exemplo, apresentou uma nova maneira de usar velhos conceitos: defesa bastante forte, ataque mais direto, treinamento em bola parada, mais domínio do espaço e menos da bola. Em suma: há mais de uma maneira de se jogar bem, não há? E ainda: concorda que jogar bem, dentro de uma certa concepção, é diferente de jogar bonito, a despeito de concepções?

O futebol é um esporte incrível porque ele tem pouquíssimas regras. Reúna 11 jogadores, bote um no gol e só ele pode tocar a bola com a mão. Vence quem fizer um gol a mais que o adversário. Desde que você respeite essas regras, que são básicas. Não há nenhuma regra na FIFA que diz que um time não pode vencer se tiver x% de posse de bola. Ou que é preciso um mínimo de x passes antes do gol. Obedeceu as regras? Jogou futebol. Pura e simplesmente assim.

O termo “posse de bola” surge na Espanha, em 2006, e ganha força no Barcelona que encantou o mundo. Nos primeiros anos, ninguém conseguia decifrá-lo, e como o que saltava aos olhos era a troca de passes, isso virou sinônimo de arte, de beleza, de jogar bem e tratar bem a bola. É uma narrativa extremamente problemática. O técnico Vicente del Bosque deu uma entrevista ao The Guardian explicando que a ideia do “tiki-taka” da Espanha entre 2008 e 2014 nunca foi atacar mais, mas sim se proteger. Se o time tem a bola, o adversário não a tem. Logo, não consegue atacar. Depois, Guardiola e outros técnicos começaram a minar a ideia de que eles queriam a bola. Primeiro, explicaram que havia uma ideia de desequilibrar o adversário por uma estrutura (o chamado jogo de posição); depois, veio a ideia de que era preciso ser objetivo. A história do futebol é a história de enganar o adversário para abrir um espaço e fazer o gol.

Toda Copa do Mundo provoca uma sensação, mas o rebuscamento dos sistemas defensivos é uma constante desde 1966. A Inglaterra era tratada no Brasil como “futebol-força” pela forma agressiva que atuava sem a bola. O Brasil de 1970 era, sobretudo, uma equipe extremamente física e que ganhou a maioria dos jogos no segundo tempo. A Holanda de 1974 perdia a bola e pressionava o adversário com uma forma imensa. O futebol sempre foi um jogo onde ocupar espaços é mais vantajoso que ter a bola. Hoje, entendemos bem que não basta apenas ter a posse: é preciso saber onde e quando ela deve chegar perto do gol.

6 O futebol brasileiro – jogado aqui: os campeonatos nacionais – é mesmo tão ruim quanto dizem, ou há certa dose de vira-latismo nisso? Vê possibilidade de melhora, a médio prazo?

Existe, sim, um desnível. E ele não é técnico, ou tático. É financeiro. Desde 1996, com a Lei de Bosnan, o futebol europeu cresceu o faturamento de modo exponencial e consegue reunir os melhores jogadores e técnicos em suas ligas. Não existe comparação porque o abismo financeiro é muito grande. Cobrar que o futebol brasileiro seja bonito é como cobrar que um Fusca tenha um motor melhor que uma Mercedez zero bala.

Não existe nenhuma possibilidade de melhora. Pelo contrário, apenas de piora. Porque a cultura imediatista e excessivamente retrógrada do brasileiro talha toda e qualquer tentativa de mudança. Para ter um jogo agradável é preciso tempo de trabalho, para ter tempo de trabalho é preciso aceitar derrotas, e aceitar uma derrota num estadual é a última coisa que torcedores e imprensa querem. Nosso jogo é essencialmente direto e aéreo não por uma questão de qualidade, mas por uma questão de pressa. Hoje, acredito que Palmeiras e Flamengo, times que destoam dos outros no tocante a investimentos, vão cada vez mais aglutinar bons jogadores e tentar um estilo que dê o que a torcida quer: títulos e nada mais.

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