Joel Pinheiro da Fonseca é economista e mestre em filosofia. Um texto seu, de 2015, foi resgatado por um militante do PCB. O texto é antigo e meio esquisito, o comunismo é ainda mais antigo e ainda mais esquisito, mas a polêmica é nova e divertida. Conversei com o Joel e pedi esclarecimentos. Minto: pedi o pagamento em dinheiro, débito ou crédito. À vista.
1 Que história é essa de que seria legítimo vender os próprios órgãos, Joel? Já não basta a uberização do trabalho e a privatização dos Correios? Quero uma resposta séria, mas não me vá escrever seriamente como o Francisco Razzo, que daí eu não entendo nadica de nada.
É uma ideia que economistas e filósofos discutem com certa normalidade. Até me espantou o auê gerado no Twitter, um espaço que, via de regra, prima pela discussão profunda e pelo cuidado com as nuances de um argumento...
Existe um problema: a fila de pessoas esperando órgãos. Muitas morrem nessa fila de espera. E, do outro lado, existe um fato: poucas doações de órgãos. E se nós pudéssemos aumentar as doações, não seria uma boa ideia? Daí surge a ideia de pagar ao doador. Eu valorizo meus rins. Agora, não são inestimáveis. A partir de um certo valor, eu estaria disposto a vender.
O problema é que essa questão envolve outras considerações, como a exploração de pessoas. É por isso que, embora nos meus dias de libertário mais simplista eu visse apenas pontos positivos (“a escolha é de cada um, cada um sabe o que é melhor para si em suas circunstâncias”), hoje tenho muitas reservas à proposta, de modo que sou contra sua implementação. O raciocínio por trás da ideia, contudo, permanece, e merece ser discutido.
Apenas um país no mundo tem um sistema legalizado de venda de órgãos (tudo regulado direitinho pelo Estado): o Irã, aquela utopia do ultraliberalismo. Como a gente pode esperar, tanto o bom quanto o ruim acontecem lá: a fila de espera por órgãos (só aberta a cidadãos, não a turistas) é muito mais curta que em outros países, e muitos conseguem um dinheiro que faz a diferença em suas vidas – vendendo órgãos. Ao mesmo tempo, ocorrem abusos, outros se arrependem do que fizeram etc.
2 Como é que fica o pessoal do “meu corpo, minhas regras” querendo proibir que o pobre venda seus órgãos? Virou então “meu pobre, minhas regras”?
Os slogans duram só na medida em que atendem ao interesse pessoal ou político. Quem defende o aborto com base no “meu corpo, minhas regras” – um princípio que tem precedência sobre todos os outros, e não aceita contestações – deveria, necessariamente, defender o direito à venda de órgãos.
Mas a discussão política jamais terá a coerência do discurso filosófico. E isso esconde algo menos palatável: ela jamais lidará, portanto, com a realidade objetiva, mas apenas com sentimentos e construções retóricas. E pior ainda: uma sociedade saudável depende desse âmbito retórico da política, ou seja, depende de uma camada de ilusão para se organizar de forma minimamente harmônica e que funcione para o maior número de pessoas.
3 O que lhe parece mais esquisito: vender órgãos como um liberal ou roubá-los como um stalinista?
Eu acho que o stalinista sai pior nessa comparação. Porque veja: ele não só viola a tal sacralidade do corpo, como ainda violenta a autodeterminação do indivíduo. E não é só especulação, não: a China prende pessoas, mata-as e utiliza seus órgãos. E há bons moços, tão horrorizados com minha modesta especulação, que aplaudem o regime chinês...
4 Rodrigo Constantino te chama de esquerdista, Jones Manoel te chama de direitista, eu te chamo de Joel Dinheiro da Fonseca. Quem está errado?
Todos! O que me define não é o dinheiro, e sim o amor incondicional à humanidade, causa única de tudo que penso, falo e faço.
5 O imposto é o roubo que o Estado impõe aos indivíduos, como acreditam os libertários?
É um roubo, mas um roubo bom, um roubo justo, um roubo necessário à ordem social. Se fosse tudo voluntário, você não seria o primeiro a regatear na caixinha comum da defesa nacional? Então, pra isso é que temos um Estado, que obriga as pessoas a contribuírem com o bem comum. Se ele garante minimamente a segurança externa e uma ordem interna justa (melhor que as alternativas), e está sujeito à opinião dos governados por meio de voto e representantes, penso que já se justifica.
Para Sto. Agostinho, o que diferenciava o Estado (legítimo) de uma gangue de bandidos era o Estado manter uma ordem justa. Um tirano, por sua vez, não era superior a um bandido. Pelo contrário, era pior, posto que seu poder é muito maior. Tendo a concordar com ele, lembrando também que o critério último de justiça é a promoção da felicidade humana.
6 O roubo é o imposto que os desfavorecidos impõem à classe-média, como acreditam os socialistas?
As ações humanas não conhecem a justificativa moral. Partem de impulsos, desejos; e só posteriormente são justificadas ou condenadas; outro exercício largamente retórico. O ladrão pobre que rouba um rico não é nem um anjo nem um demônio. Há um conflito ali: por que decidimos que a propriedade pertence por direito a um e não ao outro? Lembrando que os direitos de propriedade não estão inscritos na natureza, não nos são dados por Deus e nem decorrem da Razão Universal.
Mas uma coisa é clara: se quisermos viver numa sociedade em que as pessoas trabalham e investem pensando no futuro, não podemos permitir que o roubo prospere. Se prosperar, o melhor caminho para todos passa a ser – em vez de produzir e pensar no futuro – tirar do próximo. E aí, babau.
7 Você comia no bandejão da USP ou levava lancheira?
Fiz graduação em 5 anos na USP e em seguida um mestrado que demorou expeditos 4 aninhos. Nesses 9 anos de vida uspiana, não fui ao bandejão nem uma única vez. Me contentava com a tia que vendia pipoca com provolone na faculdade de filosofia ou – nos dias de vacas gordas – com o restaurante da faculdade de economia.
8 Por fim, mas não menos importante: é mesmo verdade que, enquanto turista aplaude o pôr-do-sol, os Pinheiro da Fonseca saúdam a abertura do pregão?
Depende. Como está a cotação do rim?