Quando um aburguesado e imaturo Hans Castorp chega ao Sanatório Internacional Berghof, em Davos, para visitar o primo tuberculoso, Joachim Ziemssen, e ficar no máximo três semanas, sequer suspeita que haveria de ficar pelos anos seguintes, que amaria e odiaria, que viveria para aprender sobre a morte, que se perderia em meio à imensidão branca dos alpes e se encontraria no microcosmo do século que prenunciava tempestades.
Também ali, Castorp acompanharia as discussões impressionantes entre Nafta e Settembrini, que anteciparam outras tantas que de fato aconteceram depois, como entre Heidegger e Cassirer, evento que um fascinado Emmanuel Levinas descreveu como a experiência de quem estivesse assistindo “à criação ou ao fim do mundo”.
Os congressos filosóficos ficaram para trás, e hoje o que se discute em Davos é a economia mundial, a globalização, o comércio exterior e as políticas públicas. Chatices importantes, mas ainda assim chatices. Jair Bolsonaro, tão imaturo e impressionável quanto Hans Castorp, discursou durante 8 minutos.
E não foi discurso dos mais arrebatadores. Leu um texto simples ao ponto do simplório, e sua expressão era a de quem não compreendia o alcance do que estava dizendo. Entendia gramaticalmente, é óbvio, mas não a complexidade dos problemas com os quais terá de lidar. As frases curtas e desconectadas entre si, o raciocínio em staccato, as generalidades e a falta de informações mais concretas, tudo soava como a tentativa de quem até queria se apresentar melhor, mas não podia.
Suas limitações foram aplaudidas pelo eleitorado cheio de entusiasmo, e a simplicidade se transformou em concisão: “Que discurso objetivo!” “Curto e grosso!” Não ter muito que dizer no encontro econômico mais importante do planeta é sinônimo de objetividade. Fica o registro.
Mas nem tudo precisa ser tão ruim. Da magreza esquelética do texto restam dobrinhas de boas intenções: abertura econômica e combate à corrupção. Bolsonaro tem de se agarrar a esses dois pilares, e não ceder às tentações de quem flerta com nacionalismos extemporâneos e segredos de liquidificador.
No romance de Thomas Mann, Nafta e Settembrini representam duas forças titânicas e igualmente atrativas: Nafta, jesuíta e alma sombria e afeita ao irracionalismo pessimista; Settembrini, humanista, apegado à racionalidade e devoto dum iluminismo idealizado que nem sempre corresponde às expectativas e aos anseios humanos.
Guardadas as proporções devidas, é no centro de um debate semelhante a esse que o país se encontra. Ernesto Araújo está para Nafta como Paulo Guedes está para Settembrini. Bolsonaro precisará fazer uma escolha difícil, se as várias frentes ideológicas do governo vierem a colidir.
No reduto da alma humana coabitam Nafta e Settembrini, em tensão insolúvel, e é bom que seja assim. Porém, na vida pública, a ênfase num dos polos importa bastante e dá o tom de governos e nações. De um lado o obscurantismo ideológico, doutro lado a racionalidade liberal.
Já experimentamos obscurantismo demais, recentemente. Bolsonaro não precisa (embora ganhasse muito) ler as 800 páginas de A Montanha Mágica para adivinhar o lado certo nesse momento.
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