Cachorro morto a pauladas numa loja Carrefour| Foto:

Não faz muito tempo, um cachorrinho foi morto a pauladas no estacionamento de uma rede de supermercados. O caso provocou indignação, gerou considerável revolta, mas vivemos tempos em que a indignação é seletiva e a revolta é politizada. Ou você fica indignado por todos, todos os dias, todas as horas, ou dá de ombros e não se importa com nada e ninguém. Ou sua indignação tem filiação partidária, ou não serve. Há militantes em toda parte fazendo boca-de-urna moral, e descobrimos que ter pena de cachorro é coisa de comunista. Gente de bem só tem pena de gente de bem. Os indignados que lamentaram o cachorrinho foram acusados de pouco lamentar os bebezinhos. A comoção canina só podia ser coisa da esquerda. O próprio cachorrinho, vai saber, talvez fosse de esquerda.

CARREGANDO :)

Por isso me causou estranheza a reação dos cabos-eleitorais de tragédias quando a menina Agatha Felix foi morta com um tiro de fuzil. Pensei: “Agora sim, uma criancinha a ser chorada!” Toda aquela energia sentimental reprimida desde a morte do cachorrinho viria à tona. Qual o quê! Defenderam a ação policial, não a vítima. Aliás, que vítima? Vítima nenhuma: efeito colateral. Nasceu no lugar errado. Estava viva na hora errada. Se protegeu perto das pessoas erradas. Fica para a próxima, porque essa criança não serve, essa não representa a família brasileira, procuremos outra menininha que seja homem-de-bem, que não conviva com traficantes em favela, que seja vítima de coisa mais perigosa que tiro de fuzil. Uma revista em quadrinhos, por exemplo.

Que eu saiba, Agatha não era de esquerda. Ao que me consta, também não era cachorrinho. Nem mesmo a perigosa combinação que resulta num cachorrinho de esquerda. Era uma criança comum, que não tinha nada que ver com crimes, Estado, direita, esquerda, polícia e bandido. Fazia balé, estudava inglês, levou um tiro. Coisas da vida. Por que ela não merece a indignação reservada às criancinhas, aquela indignação que nunca foi nem será gasta com os cachorrinhos? Por que a avareza sentimental com o cachorrinho não se transformou em generosidade para com a menininha?

Publicidade

Não é difícil imaginar o porquê. Os cristãos-novos do reacionarismo tropical foram recrutados sem muita experiência para as batalhas éticas. Leram pouco, leram rápido, leram nada a respeito do que há de valioso no conservadorismo, e aprenderam menos ainda com liberais e libertários sobre a prudência e os limites à ação do Estado. Ignoram o quanto nossos sentimentos morais dependem de certa empatia, uma empatia que prescinde de motivos ou justificativas, sem a qual a ética resulta estéril. Todos esses conceitos se transformaram numa mistura indigesta, que não termina de ser metabolizada, que está quase chegando à boca do organismo intelectual de uns e outros. Ouviram falar em império da lei, entenderam lei do mais forte; ficaram sabendo de fofocas sobre Estado mínimo, entenderam que todo Estado é pouco.

No último texto, não defendi o crime ou os criminosos. Em nenhuma linha. Primeiro, me dei cinco minutos para lamentar a morte de uma inocente. Peço desculpas por isso; da próxima vez, comemoro. Em seguida, defendi uma política de segurança pública que não se reduza ao confronto direto, bruto, tosco e burro em áreas densamente povoadas. Há experiências melhores que as do estado do Rio de Janeiro. Inteligência, tecnologia, ciência, investimento, tática, estratégia, combate à corrupção, punição na forma da lei – soluções um pouco diferentes do “mirar na cabecinha e... fogo” governamental. Isso pouparia vidas inocentes – de civis e de policiais. Sim, de policiais também, soldados numa guerra sem vencedores.

Defendi ainda que se espera do Estado, justamente do Estado, indeclinavelmente do Estado, que provoque menos danos à vida e à propriedade. Por definição. Isso nem deveria ser discutido. Para a vítima, filha de alguém, neta de alguém, alguém em si mesma, tanto faz ser morta pelo Estado ou pelo bandido. Tal como a rosa, se a morte tivesse outro nome ainda assim federia a morte. Que um criminoso atente contra a minha vida, é o esperado (e para me proteger disso existe o Estado). Que um agente do Estado o faça, é o inaceitável (é para isso que serve o Estado?). E não se invoque a simetria – a falsa simetria – entre a morte de um civil, uma criança, com a de um policial. Este sabe, quando escolhe a profissão, que há riscos inerentes a ela. Atua sob um contrato. Decidiu fazer parte da força policial e combater o crime, merece todo respeito e consideração por isso, mas fez uma escolha. Sua morte deve ser lamentada e seu heroísmo deve ser visto com gratidão e orgulho, mas é da natureza do seu trabalho. Esse fato conta para a discussão.

Tampouco me convencem os apelos a uma indiscriminada e retórica “guerra”, ou “guerra às drogas”. O termo há muito serve como metáfora-gatilho para justificar quaisquer ações, irresponsáveis e autoritárias, do estado de exceção ao Pacto Molotov-Ribbentrop. E danem-se as consequências, os cachorrinhos e as criancinhas. “Numa guerra morrem inocentes” é a máxima preguiçosa, e perigosa, de quem se acredita expectador da sorte alheia. Numa guerra morrem inocentes, é verdade, mas pouco nos importamos quando os inocentes são os outros. Que morram os inocentes de lá para que não morram os de cá. Que morram os que moram na favela. Os de longe. Os que votaram neste ou naquele. Os que não conheço. Os que não me inspiram empatia. Os que têm primos ou irmãos na cadeia. Os policiais jogados à própria sorte nos confrontos. Os cachorrinhos de esquerda. As menininhas de esquerda.