George Orwell| Foto:

A boca fala do que está cheio o coração

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– Mateus 12:34

 

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Lixo, escória, podre, comunista, extrema-imprensa, inimigo do povo.

Palavras e expressões como essas, costuradas numa gramática tortuosa e numa retórica quase sempre inflamada, têm aparecido frequentemente no vocabulário dos Bolsonaro. E, como bem sabemos, ideias e palavras têm consequências; no mínimo, revelam uma visão de mundo.

A transformação do discordante em adversário e a conversão do adversário em inimigo são meios de expandir o poder sem pedir licença à democracia ou desculpas aos eleitores. Governos autoritários, antes de cometer crimes de Estado, invariavelmente coisificam os dissidentes. A corrupção começa na linguagem.

Para fascistas, a escória eram os judeus, doentes, gays, ciganos. Para comunistas, o lixo eram os cristãos, burgueses, inimigos, delatores. O que há de semelhante, projetos à parte, é a caracterização do interlocutor como o súdito que não merece voz nem vez.

Daí fica mais fácil tratar aquele que critica como inimigo, aquele que questiona como espião, aquele que ri como herege. Basta procurar no “povo”, essa utilíssima abstração, qualquer traço de aquiescência, e pronto: temos ingredientes para fazer o pão que o ditador amassou.

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Até segunda ordem, ainda vejo em Bolsonaro um homem mais equivocado que maldoso; mais tosco que autoritário. O problema é que, em política, vale o clichê: todo cuidado é e sempre será pouco. O modo como um governante fala à nação não pode ser belicoso ou deliberadamente agressivo. A escolha das palavras e expressões, longe de ser cosmética, é primordialmente ética.

Que o presidente e seus filhos discutam com a oposição, real e imaginária, é legítimo. No entanto, que reifiquem essa oposição, que reduzam os discordantes a “lixo”, “escória”, “podridão”, “comunistas”, “extrema-imprensa”, “inimigos do povo” – isso é, de fato, um problema mais sério do que parece.

Problema inclusive para as alegadas boas intenções do presidente. Se ele é melhor do que acreditam que seja, se ele não é o bicho-papão que tem assustado tanta gente, nada mais oportuno do que provar isso falando com prudência e cuidado; com respeito e tolerância.

Não é honesto nem inteligente reclamar da má vontade alheia quem acirra tanto os ânimos com o uso de construções retóricas de palanque. Dizer qualquer coisa, de qualquer modo, e alegar que foi mal interpretado, é um jeito de nunca se responsabilizar por nada. Justo quem, por sua posição, mais deveria se responsabilizar por tudo.

Nesse governo, a produção de declarações controversas ou francamente absurdas, inclusive sobre matérias importantes, supera o razoável; rivaliza com os tenebrosos tempos de Dilma Rousseff. Os constantes desmentidos, as explicações e as justificativas atestam isso, e o governo parece se opor a si mesmo.

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A condução serena de um mandato depende antes de quem governa do que de quem é governado. Há um desejo imenso de que as coisas melhorem no país. Muitos dos votos que o presidente recebeu são, mais do que votos convictos, votos de confiança; mais do que votos de confiança, votos de esperança.

O recente movimento no tabuleiro governamental, que indica o afastamento de membros ideológicos e fanatizados, é auspiciosa notícia. Na dúvida entre a democracia e a conspiração, entre a reforma econômica e a cruzada moral, entre a prudência dos militares e o descompasso dos ideólogos, não é difícil compreender que lado Jair Bolsonaro deveria escolher. Espero que escolha o lado certo – para o seu próprio bem e, mais importante, para o bem de todos nós.