Carretilha, lambreta, pecado: o politicamente correto chegou e se instalou no futebol.
No jogo entre PSG e Montpellier, Neymar, acuado à linha de fundo, tenta um drible desconcertante: a carretilha, também chamada de lambreta, eternizada pelo ponta-direita santista Kaneko, no fim dos anos 60.
O movimento não se completa, mas a ousadia é recompensada com uma advertência áspera do burocrático soprador de apito, seguida de cartão amarelo e provável anotação na súmula. Mais um pouco e acionam a OTAN.
Neymar não quebrou, chutou, cotovelou, cuspiu, ofendeu o adversário. Tão somente o driblou. Mas há dribles e dribles.
Eis que inventaram a bizantina distinção entre o drible objetivo e o drible antidesportivo. O primeiro é aceito porque “em direção ao gol”; o segundo é rejeitado porque se contenta com enfeitar a jogada e, aspas, humilhar o colega de profissão.
Ocorre que o drible, mais do que qualquer outro recurso, é mesmo truque, ilusionismo, magia, pirraça, trapaça, graça. O torcedor gosta de ver dribles objetivos e inobjetivos. Dribles mais-valia, retóricos, barrocos, rococós. Dribles que excedem, que exageram, que exasperam, que se derramam. A audiência quer assistir aos dribles protelatórios e laterais, às gingas e às fintas de quem sabe que a menor distância entre a bola e o gol nem sempre é uma linha reta.
Nas ligas de todo o mundo está em curso a adaptação do futebol aos novos tempos e costumes. Tempos e costumes em que a demonstração de habilidade acima da média, e a exibição de controle de bola fora do comum, soam como ofensas e bofetadas. O marcador não merece a infâmia de ser ludibriado, pobrezinho, salvo se o drible for correto e probo. Drible funcionário-público. Drible padrão-FIFA.
Inevitável lembrar Garrincha. Sim, eu sei, o futebol era outro. Mas sua habilidade irresponsável e circense popularizou muito mais a arte do ludopédio do que os protocolos e as associações do esporte. Garrincha talvez não fosse possível num jogo mais dinâmico e compactado, mais veloz e potente, que limitaria seus dribles de Carlitos.
Ainda pior, Garrincha não seria possível porque seus dribles de Carlitos, mais afeitos à exibição que à competição, restariam coibidos e punidos como gestos imorais, atentados violentos ao pudor, obscenidades indignas de um esporte que nasceu na elite, foi expropriado pelo povo e aos poucos tem sido empacotado, destinado e vendido à classe-média pagadora de ingressos a 400 reais.
Alexandre de Carvalho Kaneko jogou poucos meses no lendário time santista. Seu drible, de execução perfeita, deixou o zagueiro Carlucci para trás, a refletir sobre Heidegger, e foi completado para o gol com a letra de Toninho Guerreiro, naquele 5 x 1 sobre o Botafogo (SP), disputado na Vila Belmiro.
Kaneko então desapareceu no azul do anonimato, como se adivinhasse o melancólico futuro de sua invenção.
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