• Carregando...
Estreia de “O Cantor de Jazz”, em 1927
Estreia de “O Cantor de Jazz”, em 1927| Foto:

A questão que dá título a uma imprescindível coletânea de ensaios do francês André Bazin, crítico entre os críticos, serve de mote para respostas que disparam novas perguntas e terminam, perguntas e respostas, em lugar nenhum, muito embora num criativo e instigante lugar-nenhum, força propulsora dessa arte que é, talvez mais do que todas as outras, reflexão de si mesma enquanto se faz.

As origens da literatura, da música, da dança e do teatro são, até certo ponto, imprecisas, mas o cinema tem começo determinado, meio documentado e, para muitos, até um fim lamentado. As carpideiras choram sua morte há tempos. Com o esgotamento da ideia de cinema de autor? Talvez antes. Não nos esqueçamos de que houve – há – quem tenha atestado o óbito na passagem dos filmes mudos aos falados. Ali o cinema deixava de ser uma gramática de imagens para se transformar numa outra coisa qualquer, muito mais grosseira e dependente de fatores alheios a ela.

Num dos últimos artigos de Moniz Vianna, o ferino crítico lamenta, com a morte de John Ford, o começo do fim do próprio cinema. E não só dele: “Assim como Shakespeare está cada vez mais vivo, a despeito da agonia tão lenta do teatro, Ford está cada vez mais presente, ainda que o cinema já não tenha mais a mesma alma”. O teatro agonizava, a alma do cinema agonizava também. O texto, de resto belíssimo, foi publicado no Correio da Manhã, em 1973. De lá para cá, tantos filmes – e grandes filmes – foram feitos.

Por exemplo, alguns dos maiores de Martin Scorsese (Taxi Driver, 1976; Touro Indomável, 1980; Os Bons Companheiros, 1990) e de Francis Ford Coppola (A Conversação, 1974; Apocalypse Now, 1979). Por isso, soam extemporâneas – e moralistas – as recentes críticas de Scorsese e Coppola aos filmes dos estúdios Marvel. Mais do que críticas, aliás, foram sentenças: aquilo nem cinema é.

E se Coppola gosta de declarações tão definitivas (anos atrás, criticou George Lucas e seu Star Wars), Scorsese, por sua vez, deveria ter um pouco mais de cuidado com ultimatos desse tipo. Afinal de contas, está para ser conhecido o seu (com justiça) muito esperado O Irlandês, filme que, presumo, será cinema, grande cinema, ainda que produzido pela Netflix, que para muitos puristas é qualquer coisa parecida com cinema, mas não é cinema. Cinema que é cinema é feito para ser visto no cinema. A experiência cinematográfica, a se acreditar nos critérios de alguns críticos, acontece quando determinadas condições são atendidas. O resto – e o resto é a produção para streaming – é telefilme.

Longe de mim desmerecer a carreira de diretores como eles, e fico até feliz que outras polêmicas, que não as políticas, tomem lugar no debate público. Bons tempos em que se matava e morria por causa de uma crítica ruim. No entanto, não deixo de notar que existe muito de despeito – e de preconceito – nessas opiniões.

O cinema é, entre as artes, a que mais depende (e a que mais se aproveita) da evolução e da variedade técnica e tecnológica. A tecnologia não é um componente externo à arte cinematográfica; é algo que lhe é intrínseco, que lhe dá origem, que afeta diretamente as possibilidades estéticas e narrativas à disposição. Não bastasse, o próprio conceito de filme é tudo, menos pacífico e linear.

Tal como nas artes visuais, que se alforriaram da mimese e ganharam autonomia estético-ontológica, filmes podem ser feitos com muitos ou poucos recursos, com interpretações intimistas ou computação gráfica, com astros e estrelas ou amadores. As emoções, por sua vez, não dependem dos atores, exatamente, nem de uma certa concepção previamente aceita, de muito ou pouco barulho, de carros voando ou perfeitamente estacionados, de uma filosofia estética – mas sim da colisão, ou do encontro, entre o filme e seu espectador.

Espectador que pode se emocionar com Marlon Brando interpretando o desvairado coronel Kurtz, ou com o vai-e-vem de uma sacolinha plástica em Beleza Americana. Talvez os filmes da Marvel não sejam mesmo capazes de inspirar, de fato, porque lembram parques temáticos, ou porque se trata, no fim das contas, de um teatro de bonecos com vagas feições humanas, mas nem por isso ignoro que muitos filmes – sim, filmes – de Hayao Miyazaki são melhores que alguns dos mais pretensiosos filmes que já vi. Ninguém é dono da linguagem cinematográfica.

Os filmes da Marvel podem ser ruins ou limitados. Alguns (muitos) de fato o são. Mas são filmes. São cinema. Tem de ser criticados como filmes ruins, cinema ruim, tentativas frustradas e frustrantes, tempo desperdiçado e dinheiro jogado fora, como queiram. Porém, são algumas das tantas versões daquilo que começou como entretenimento que assustava os populares, aprendeu a falar, atingiu a maioridade, envelheceu bem, obrigado, e morreu e morrerá tantas vezes para sempre ressuscitar no final, quando as luzes se acendem e lentamente sobem os créditos.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]