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Gustavo Nogy

Gustavo Nogy

O STF no banco dos réus

Vista noturna do Supremo Tribunal Federal em noite de lua cheia. Foto: Fellipe Sampaio /SCO/ST (Foto: )

Deixemos as paixões de lado, na medida do possível. O que ora se discute no Supremo Tribunal Federal não é a conveniência ou a legitimidade da prisão depois de julgamento em segunda instância. Portanto, não se trata de ser contra ou a favor da prisão em si mesma considerada, satisfeitas certas condições, mas sim do correto entendimento do artigo 283, do Código de Processo Penal, quando recepcionado à luz do artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal. É uma exegese textual, que implica certa prática correspondente.

Recuo um pouco e me disponho a expor, sem meias palavras, minha posição: sou a favor da prisão após segunda instância, e sei que em muitos países ela é permitida (o que, aliás, não faz diferença: o direito com que julgamos é o direito posto, não suposto ou comparado). Tenho convicção de que os princípios da presunção de inocência e da ampla defesa não são afetados, nem limitados, num processo em que o réu pode se defender em duas instâncias. O sistema recursal brasileiro precisa ser revisto, esse é um ponto. Ocorre que não é disso que trata o polêmico julgamento. Outro é o problema.

Do ponto de vista jurídico, a controvérsia está na interpretação de dois artigos e da conexão entre eles. O que eles dizem, de fato? O que deles se depreende? Pois há limites semânticos em qualquer texto, e num texto jurídico, vinculante, tais limites têm de ser maximamente precisos e observados. Lei não é poesia, embora alguns causídicos sejam verdadeiros artistas. Como assíduo leitor de literatura, rejeito o vício metodológico segundo o qual o texto é qualquer coisa que fizermos (ou lermos) dele. Por mais amplo, plurissenso, alusivo e rico seja o texto literário, ainda assim ele diz uma coisa, pode dizer muitas coisas, mas não diz todas as coisas.

Num texto jurídico, essa limitação é necessariamente maior. E tem de ser maior. Pois é da leitura de algumas linhas que alguém conhece ou deixa a prisão; ganha ou perde a guarda de um filho; cumpre ou se desobriga de cumprir um contrato. Na vida cotidiana, ninguém quer ser enredado numa trama de interpretações, narrativas, opiniões e metamorfoses de um juiz que porventura decida “conforme a sua consciência” (Lenio Streck). Queremos que no direito, na economia, na administração pública, o que está fixado no papel com determinado sentido permaneça com o mesmo sentido amanhã, depois de amanhã, no ano que vem.

Diante desses critérios, resta que a leitura dita “garantista” (garantismo virou palavrão no país em que o direito virou política, e a política virou qualquer coisa) do artigo 283 do CPP, na moldura Constituição, é juridicamente correta. Basta ler um artigo e outro. Ler o que está escrito, não o que gostaríamos que estivesse. Não o que nossa moral, nossa indignação, nosso fígado gostariam. Mas a verdade é que o estrago já foi feito. O STF sairá ainda menor desse julgamento, seja qual for o resultado.

É compreensível que duvidemos do espírito público dos nossos ministros quando sentimos o cheiro – o fedor – do populismo judicial; quando percebemos que o Supremo é refém de onze excêntricas figuras que mudam de opinião ano a ano, voto a voto, eleição a eleição, entre o grito das ruas e o sussurro dos bastidores, cujas togas são o cobertor curto da República. Tem sido tarefa inglória e bastante ingrata defender a institucionalidade da Corte, num tempo em que os titulares não prezam por ela. Muito pior e ainda mais danoso ao direito que a rejeição às garantias amplas é a defesa ampla das garantias de ocasião.

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