Em 1904, um fisiologista russo foi premiado com o Nobel de medicina por suas pesquisas sobre o aparelho digestivo de animais. Isso já teria sido suficiente para que entrasse para a história da ciência, mas Ivan Petrovich Pavlov se tornou notório por outro tipo de investigação.
Ao estudar a produção de saliva de cães quando expostos a diversos tipos de estimulação palatar, Pavlov descobriu o mecanismo do condicionamento clássico, que consiste em criar ou inibir uma resposta fisiológica – ou mesmo psicológica – com a repetição controlada de estímulos, comandos, compensação ou frustração.
Ele teria encontrado ótimas condições laboratoriais no Brasil, especialmente no pleito eleitoral do Ano da Graça de 2018.
O rescaldo da operação Lava Jato, à parte o inédito e providencial combate à corrupção, é uma campanha de quase nenhum debate rigoroso e de um tipo de autoritarismo moral que me parece, na melhor das hipóteses, reducionista; na pior, estupidificante. Tudo agora se resolve com reprimendas éticas, sintoma dum farisaísmo exasperado e algo suspeito.
A moral privada e a ética pública não devem ser excluídas dos trabalhos. Muito pelo contrário: política é, necessariamente, ciência – ou arte – moral. Aproveito a fórmula do escritor Bruno Garschagen, cuja ênfase tomo a liberdade de inverter, e pondero: se um país não muda sem virtudes na política, apenas virtudes na política não mudam um país.
Admito que o atentado à vida de Jair Bolsonaro – e à legítima escolha do eleitor – tem implicações que vão além das mais corriqueiras. Entretanto, a facada não ilumina ninguém. O crime não justifica qualquer coisa. O blefe não é bom argumento.
O recrudescimento do discurso triunfalista – “só temos duas possibilidades: ou Bolsonaro ou nada” – serve para confundir o que já está confuso. Diante de um quadro político empobrecido, agora todos os discursos são um discurso; todas as configurações entre economia, Estado, direito e moral são uma configuração.
Não é muito o que se sabe sobre uma futura presidência do candidato do PSL. Liberalismo econômico e oposição à esquerda são as linhas gerais, com as quais concordo. Porém, são linhas tão gerais que podem ser preenchidas com qualquer conteúdo substantivo. O Brasil não é uma palestra de Paulo Guedes. Um autoritarismo pode ser trocado por outro.
Condenar a esquerda radical e golpista não implica aderir a determinado candidato e sua visão de mundo, como se estivéssemos tratando dos preparativos para a festa do Juízo Final, com direito a ilustrações do Gustave Doré. Não estamos. Garantir que estamos é truque próprio de manipuladores: “Como o fim está próximo, vocês devem me obedecer”.
Não, muito obrigado. Sou ateu desse tipo de deus. Sou herege nesse tipo de religião.
Eis o problema de muitos eleitores de Jair Bolsonaro e do espírito que anima essa campanha: pretendem-se revestidos de autoridade profética, joões batistas a anunciar a iminente chegada do Messias. Com ou sem trocadilho.
A expectativa vira convicção, e esta, certeza inabalável; o senso de pertencimento ganha ares de reunião tribal. Quem não compartilha das mesmas opiniões, ou da totalidade das mesmas opiniões, está fora, está contra, fomenta a divisão.
Em meio ao desnorteante sumário de crimes e castigos, de promessas e frustrações, de eleições e impedimentos, queremos aderir, concordar, aceitar, afirmar, juntar, achar a nossa turma. No dizer do filósofo Francisco Razzo – “fazer da política, esperança”. Na versão do português João Pereira Coutinho, “endeusar políticos é sintoma de transtorno mental”.
E são nesses momentos de tensão política e sensibilidade crispada que surge um tipo muito barato de moralismo que não me convence; antes, me afasta. Moralismo que é mais chantagem que moralidade.
Como cachorrinhos de Pavlov, nossa sensibilidade ética saliva ao ouvir o apito do candidato predileto. A cada novo sinal, corremos à latinha para ver se há comida ali. Depois de certo tempo, haja comida ou não, basta que ouçamos o apito para que a baba moralista escorra da boca à latinha; no caso, à urna.
De repente, todo correligionário se transforma num soldado das mais altas virtudes e numa inteligência das mais altas luzes, e aponta um, dois, dez dedos na sua cara, berrando:
“Agora você tem que fazer isso!”
“Doravante, só existirá essa opção!”
A complexidade dos problemas se converte em chamada de ordem, grito esganiçado, clichê inconsequente, como se a sabedoria do próprio Espírito Santo tivesse baixado em gregos e romanos, judeus e gentios, num pentecostes político e vulgar.
Sinto dizer, mas atentados são atentados: terríveis, graves, condenáveis. Não são revelações bíblicas.
Nem sou eu um cachorrinho de Pavlov.
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