Tenho lido críticas aos críticos de Bolsonaro, que podem ser resumidas na seguinte frase: “É muito cedo para criticar, você está torcendo contra o Brasil!”
Essa objeção e outras de semelhante teor despencam em cada texto publicado, como se fossem verdades inapeláveis, reveladas pelo próprio Deus e vinculantes como um mandamento mosaico. Não fazem sentido nenhum, infelizmente. Por mais de uma razão.
Não é e nunca será cedo para criticar o poder. Que me perdoem o pleonasmo, mas o poder é poderoso. O poder político-estatal já tem prerrogativas que o cidadão comum não tem. A participação democrática é limitada, precária, circunscrita a determinados ritos, mediada por uma engenhosa estrutura partidária e administrativa.
Na prática, participamos com o voto, a cada dois anos, e somente agora, com o advento das mídias sociais, tornou-se possível arregimentar multidões para protestos de maior envergadura. É verdade que o intenso debate público, que já não se limita aos tradicionais meios de comunicação e se espraia pelas redes, diminuiu a distância entre o poder e o povo; ainda assim, a classe política e o estamento burocrático continuam a ter mais poder sobre o povo do que este sobre aquele.
Bolsonaro elegeu-se aproveitando-se dessa nova ordem – que é, de certa forma, uma desordem, uma ruptura – da participação política. Nem ele, nem Trump – nem mesmo Obama, anos atrás – têm do que reclamar. O problema é que pau que bate em Chico, bate (deveria bater) em Francisco.
As críticas são agora mais intensas, próximas, imediatas e sem filtro. Aprender a lidar com elas, quando negativas, é tão importante quanto aproveitar-se delas, quando favoráveis. Resta saber se o presidente e seu núcleo admitirão isso, ou se pretendem mesmo tratar os críticos – a mídia tradicional, a imprensa – como “inimigos do povo”. Expressão que me dá calafrios.
Invocar o povo contra inimigos externos e internos é próprio de regimes iliberais, mesmo quando não são fascistoides. A esquerda recorre com bastante frequência a essas abstrações: “o povo” e seus “inimigos”. Inimigos que podem ser o país vizinho, o terror, os imigrantes, a oposição, a imprensa, o jornalista estrangeiro, os eleitores do outro candidato, os burgueses e, no fim, qualquer um que incomode.
Meu temor de que o governo dê efeito concreto a impulsos autoritários é pequeno. Por ironia, o papel de poder moderador tem sido assumido por alguns dos militares, dentre eles o sensato general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional. Ele compreende o significado de sua pasta, e não me parece que os militares estejam realmente dispostos a novas aventuras.
Aliás, uma oportunidade que não pode ser perdida é a de “reposicionamento de marca” dos militares. Muitos têm competência e ética e não querem saber de ruptura institucional. Que façam bom trabalho e tenham consciência de que respeitar a CF e o governo civil não apagará os erros terríveis que cometeram, mas afastará essa recorrente chantagem da esquerda, segundo a qual tudo o que não é espelho é golpe de 64.
Entretanto, não basta oficialmente conter o autoritarismo estatal. É preciso também aceitar, com muito mais boa vontade, a dinâmica democrática em toda a sua extensão e profundidade, que comporta críticas e fiscalização incessantes, que compreende o papel chato, mas imprescindível, da mídia – tradicional ou não. As críticas ao governo não são apressadas. Houve campanha, promessas foram feitas, ideias foram discutidas, cartas foram colocadas na mesa e, antes da campanha, há uma história política de cada um de seus protagonistas. Sempre é tempo de criticar a política e os políticos.
Antes de terminar, gostaria de esclarecer pela última vez um ponto que talvez interesse aos leitores da Gazeta do Povo.
José Luiz Datena, no espetaculoso programa diário das 18h, cunhou o bordão: “Audiência rotativa da Band!” Com isso ele queria dizer que muita gente ligava a tevê enquanto o programa acontecia, e por isso reprisava duas, três, cinco vezes a mesma matéria, para que os últimos a chegar também pudessem assistir. Uma estratégia perspicaz para o que antigamente a gente chamava de “encher linguiça”.
Pois aqui também há, pode haver, certa rotatividade na audiência (e encheção de linguiça, um gaiato diria). Alguns leitores me conhecem há meses, outros há anos, e muitos há poucos dias ou semanas. Quem hoje aparece na Gazeta e lê meus textos, bastante críticos a Bolsonaro, pode acreditar que sou, como dizem?, comunista, esquerdopata, isentão, petista, inimigo do povo e longo etcetera. Quem acha isso, acha errado.
Escrevo nas mídias sociais e em blogs faz um bom tempo. Caso tenham curiosidade, procurem meu nome e tentem encontrar declarações de voto, defesas, elogios ao PT, ao Lula, à Dilma e demais espécimes da curiosa fauna esquerdista brasileira. Não encontrarão. Nunca votei neles, nem quando muitos que hoje defendem Bolsonaro apostavam no Lula. Vocês sabem aquele petismo romântico que acometeu, como sarampo, quase todo mundo depois da redemocratização? Não peguei. Meu primeiro voto não foi nem ao Lula nem ao PT. Nem meu segundo, nem meu terceiro, e assim por diante.
Os desconfiados talvez encontrem, noutros carnavais, textos ainda mais conservadores do que os de hoje. Pesquisem e se surpreendam. Por exemplo, no livro Saudades dos cigarros que nunca fumarei, publicado em 2017 pela editora Record, dedico um perfil ensaístico ao ex-presidente e atual condenado, com o sugestivo título de “Mula sem cabeça”. Nesse texto lembro a saudosa entrevista de Lula à revista Playboy, em que ele elogia a “energia” de Adolf Hitler. Também no livro, em crônicas e breves ensaios, há críticas mais do que ácidas à mentalidade de esquerda e de alguns de seus epígonos.
Pois bem, o leitor então se pergunta, e me pergunta: “O que mudou?” Nada mudou. Continuo crítico da esquerda (embora admita a esquerda civilizada, mas isso é outra história), do PT, do Lula e de seu elenco de fantoches. O que espanta, e talvez confunda, é o puro e simples fato de que, para mim, Jair Bolsonaro não era a melhor opção no cenário conservador e liberal. Só isso. Havia outros que, para meu gosto, eram melhores (dentro das possibilidades brasileiras, não muito abundantes). É difícil entender? Não deveria ser difícil. Basta boa vontade.
Na minha avaliação, Bolsonaro nem compreende o que há de valioso no conservadorismo, nem acredita na radicalidade do liberalismo econômico. Sua candidatura e vitória correspondem a um arranjo mais ou menos improvisado (conheceu Paulo Guedes pouco tempo atrás) e a um propício alinhamento dos astros, noves fora o efeito devastador provocado pela assepsia da Lava Jato. Ele foi inteligente de perceber o momento, calibrar o discurso, atender a demanda por ideias e valores e enfrentar o establishment. Deu tudo certo para ele. Resta saber se dará tudo certo para nós.
Ele ganhou, o governo começa e nem todo crítico é apressado ou inimigo do povo. Não me ocorre torcer para que o governo dê errado. Moro no Brasil, pretendo continuar aqui, sofrerei as consequências de um mau governo. Mas o trabalho do crítico é criticar, do escritor é escrever, do fiscal é fiscalizar. Mesmo um bom governo merece críticas, porque sempre haverá o que criticar. Ele, repito, não é meu malvado favorito. Tínhamos outras opções.
Dizer isso, exercer a autonomia crítica no debate, não é sinônimo de petismo ou desonestidade (pleonasmo de novo). Desonesto eu seria se me alinhasse ao governo para conseguir dele, e de seu público, benefícios ou reconhecimentos de qualquer ordem. Dispenso-os. Gosto da liberdade de pensar (errar e acertar) sem amarras. Fiz com o PT, faço com Bolsonaro, farei quando Cabo Daciolo for consagrado e eleito Presidente da República Federativa do Brasil.
Glória a Deux.