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Entro no elevador e lá está o vizinho, paramentado e contrafeito. Trocamos bom-dia, como dois comerciantes, por trás das respectivas máscaras – a minha, preta; a dele, estampada.
Volto a atenção à porta do elevador, para não dar atenção à porta do vizinho. Em vão.
– Ridículo!
O que foi, pergunto.
– Tudo isso é ridículo!, repete como se repetisse um sutra.
Então percebo o motivo de tão colérica indignação: que estejamos mascarados lhe parece ridículo. E insiste que essa história toda é ridícula, os números são ridículos, a própria China é ridícula.
Pondero que os mais de 80 mil mortos (só no Brasil) são tudo, menos ridículos. Morte nenhuma será ridícula. Oitenta mil, cem mil mortes jamais serão ridículas, nem neste elevador, nem na distante China.
– A Gripe Espanhola matou mais...
Matou menos, retruquei. Ficou desnorteado, insisti, matou menos, confirmei, matou menos. Ignoro se matou menos, mas jurei que matou menos, com o descaramento de um advogado. Eu queria ferir de morte sua convicção. Ele hesitou.
Porém – e se a Espanhola tivesse mesmo matado mais gente?
De acordo com essa macabra filosofia contábil, que outras desgraças, guerras e pestes tenham matado mais, nos consola caso as próximas desgraças, guerras e pestes venham a matar menos. Pois imaginem os senhores, as senhoras, o que seria de nós se as autoridades científicas, sanitárias e públicas pensassem assim, com essa quietude de buda.
Até hoje não haveria vacina, antibiótico, analgésico. Morreríamos de sarampo, de tuberculose, de hanseníase. Seríamos ainda uns leprosos bíblicos. Uns leprosos bíblicos, e pior: sem acreditar na Bíblia. Uma gripe, uma alergia, um sangramento, uma apendicite, um carrapato, uma cárie, uma pneumonia – e até logo, passar bem, tantos já morreram, tantos haverão de morrer, não se há de fazer nada.
Que morramos, cedo ou tarde, de tiro ou doença, de ódio ou amor, isso é certo. Mas não é certo que aceitemos, braços cruzados, soldados rasos, a morte evitável, muito menos que façamos pouco dos que agora estupidamente morrem às pencas, contagiosos, sem velório, sem padre-nosso, sem dois ou três parentes a carregar o caixão.
O itinerário do 8º andar ao subsolo durou mais que uma viagem de ida e volta à China.
Trocamos bom-dia, como dois comerciantes, por trás das respectivas máscaras – a minha, preta; a dele, estampada.